A casa não tinha portas. Passávamos pelas divisões através do que deveria ser o lugar de uma porta, até o chão mudava, mas nada fechava um lado do outro. Só em lugares que pedissem alguma privacidade se corria uns reposteiros toscos, pesados e velhos. A casa já era assim desde os tempos da aldeia, quando era pouca gente e todos se conheciam; depois que a vila se tornara cidade, parecia perigoso persistir nessa tradição. Eu gostava de correr pelos corredores infinitos que levavam da cozinha à sala, ambas nos extremos da casa. Ninguém me impedia, porque afinal não havia perigo de me aleijar nas esquinas dos móveis que eram quase nenhuns. Só um quadro ou uma pequena estante cortavam por breves momentos a nudez das paredes. E eu corria sempre, sem saber o que me levava a não ficar quieto, nem à hora da refeição, com a mesa cheia de narizes a bicar na sopa; eu tinha que me mexer. Os meus pais, sempre tão correctos e disciplinadores, tornavam-se, quando visitávamos os tios da minha mãe, indiferentes a tudo o que eu fizesse. À excepção de quando, num almoço, perguntei em que fechadura se usava uma chave que encontrei perdida no sótão.
terça-feira, 31 de janeiro de 2012
A casa não tinha portas. Passávamos pelas divisões através do que deveria ser o lugar de uma porta, até o chão mudava, mas nada fechava um lado do outro. Só em lugares que pedissem alguma privacidade se corria uns reposteiros toscos, pesados e velhos. A casa já era assim desde os tempos da aldeia, quando era pouca gente e todos se conheciam; depois que a vila se tornara cidade, parecia perigoso persistir nessa tradição. Eu gostava de correr pelos corredores infinitos que levavam da cozinha à sala, ambas nos extremos da casa. Ninguém me impedia, porque afinal não havia perigo de me aleijar nas esquinas dos móveis que eram quase nenhuns. Só um quadro ou uma pequena estante cortavam por breves momentos a nudez das paredes. E eu corria sempre, sem saber o que me levava a não ficar quieto, nem à hora da refeição, com a mesa cheia de narizes a bicar na sopa; eu tinha que me mexer. Os meus pais, sempre tão correctos e disciplinadores, tornavam-se, quando visitávamos os tios da minha mãe, indiferentes a tudo o que eu fizesse. À excepção de quando, num almoço, perguntei em que fechadura se usava uma chave que encontrei perdida no sótão.
quarta-feira, 18 de janeiro de 2012
Até que chegou o dia e foi internada. Fui com ela à maternidade, Flora entrou por ali dentro como rainha. Escolheu o quarto com certa dificuldade de escolha. Porque havia o ruído da rua e as traseiras dos prédios com os canos saídos como varizes. E os do meio eram mais lúgubres. Ficou num que tinha sol e um pouco de tráfego para ouvir. Eu ia lá todos os dias mas ela não aprovava:
- Venha só no dia próprio - disse-me.
O dia chegou, eu fui. Estive lá até à noite e havia o jornal da minha obrigação. O pai de Flora era o meu director, era viúvo, apareceu também, mas tudo afinal estava ainda atrasado. O pai de Flora saiu, eu fiquei ainda, até que saí também. Ia despedir-me e dar-lhe um beijo mais íntimo. Flora disse-me:
- Seja casto.
Vergílio Ferreira, Até ao fim
segunda-feira, 9 de janeiro de 2012
A criança vai enumerando todas as coisas que passam por si do outro lado do vidro do carro. Pessoas, árvores, as cores de uns, o tamanho de outros, as formas, as quantidades. Há sempre qualquer coisa nova que marca toda a atenção inocente da sua infância. De vez em quando pergunta à mãe se também viu, ou qual o nome do que não conhece, ou porque é que aquela senhora é assim, ou aquele cão tem o pêlo curtinho, o carro amarelo, a ambulância a fazer barulho ao longe ou o semáforo a brincar com as cores. A mãe dá respostas curtas, quase mudas, querendo que o filho se cale, como ela e o marido estão a fazer. Já sabe que vai ser um dia mau, porque vão à reunião anual da família dele. É-lhe difícil estar com aquela gente, o sogro com olhares perversos, a não disfarçar o que lhe vai na imaginação; a sogra a acusá-la de ser o que o velho está a pensar. A cunhada a dar exemplos hipócritas de mulher ideal para criar um lar, cuidar da casa e dos filhos, tudo na perfeição e com eterna alegria - pedaço de cristal puro e fino que, passado pouco tempo, não resiste ao uso intensivo a que não está habituado e acaba por se quebrar, vertendo o líquido fétido que guardava. É-lhe difícil ver os sobrinhos a maltratarem o seu pequenino, mas se diz alguma coisa: são brincadeiras de criança, é sem maldade. Incomoda-a o cunhado, a passar-lhe as mãos abaixo da cintura, a dizer indecências, disfarçadas com risos ruidosos de um humor de fraco gosto. É-lhe também insuportável o marido a acusá-la de não se esforçar para se dar bem com a família - mas qual família?
sábado, 7 de janeiro de 2012
Futur proche
Cheguei a casa. Na sala, ocupando o sofá, o teu corpo estendido na brandura de um sono calmo. O rosto virado para o ombro direito, com os cabelos soltos para trás do pescoço. As linhas agressivas do nariz a desaguarem na boca desprotegida. Os braços, lançados para distâncias próximas, levantam a camisola do pijama que, ondeada pelos ossos do ventre, insinua a planura delicada que ladeia o vulcão do umbigo. O peito, revelado por três botões abertos, move-se na mecânica serena do ar que te renova o corpo, e o volume sóbrio dos seios arranca a descida vertiginosa pela cintura apertada. Antes do elástico das calças, a cor fogosa da peça interior estica-se pouco acima das tuas cores íntimas, e as pernas, após a breve curva dos joelhos, expandem-se no assombro da linearidade vítrea dos pés frágeis. Deixo a mala no chão, o casaco em cima dela; descalço um pé com o outro e alivio as calças. Junto-me a ti; estou em casa.
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