domingo, 27 de novembro de 2011



Consegues ainda fechar a porta do quarto antes de eu lá chegar. Rodas rápida a chave, e continuas a gritar, agora do lado de dentro, para eu desaparecer de vez da tua vida. Esta nossa discussão não começou agora, pela razão insignificante que te fez levantar da mesa; já andamos assim há muito tempo, desde que vivemos os dois. A nossa vida tem sido um desentendimento constante, adormecido por vezes mas elevado à sua plenitude em ocasiões como esta, agora. Ouço o estilhaço do espelho da cómoda, a queda das gavetas no chão, os frascos de perfume na parede, tecidos a serem rasgados (da cama?, do roupeiro?), ao compasso da fúria que te arranha a garganta e se transforma num grunhido raivoso de destruição. Tento ainda abrir a porta, forçá-la para rebentar a fechadura, mas não consigo, se calhar também não quero; acho que já não quero nada disto. Mas agora é tarde para voltar a ser o que era antes de ti. Não me consigo conformar com a desarmonia que há entre nós, mas tenho de me resignar a estar contigo, não apenas por ti, mas por mim também. Soube bem ver um corpo como o teu arrebatado pelo meu prazer; soube bem mostrar-te, como prémio da minha vitória, aos outros caçadores; soube bem ter o exclusivo dos teus olhos. Tudo isso, porém, trazia uma contrapartida: para poder usufruir da tua beleza, tive de aceitar a instabilidade do teu humor. Ninguém é perfeito,  e se tu eras portadora de um corpo sem defeito, o defeito tinha de estar em algum lado... Com o tempo, a aparência efémera das belas formas foi decaindo, e com ela o teu feitio: ficaste ainda pior. Agora, sem a atracção que te possa dar ainda algum valor, vives ressentida e presa à velhice inexorável - a tua e a minha; porque aquilo que te garantia superioridade sobre todos os outros era também o que vias quando me olhavas; e o meu estado actual lembra-te cruamente que também tu estás assim. Mas agora não te posso deixar. O que seria de ti, e de mim? Se eu desistisse agora de tentar pôr esta parede abaixo, e saísse pela outra porta, a da rua, não haveria ninguém que te apoiasse como eu, tornavas-te objecto de desvios desumanos; e a solidão apressava ainda mais um fim que está próximo mas que buscarias por ti. E se te deixasse, eu viveria até ao meu fim a dor de ter abandonado a mulher que, nesta vida, fui permitido amar.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Nunca mais!



Tudo ainda seduz, convida aos gozos;
É perfumado o ar, macio o chão;
A selva juvenil, prados viçosos...
- Tudo reverdeceu! - minha alma não!...

Amelia Janny, in Panorama photographico de Portugal, vol. II (1872), pp. 104

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Cinco séculos



O mar devorou-nos. Parece que a rubra Cruz de Cristo, aberta nas bandeiras, consigo levava na verdade o sangue, a virtude e a fôrça das populações vivas que tinham aclamado o Mestre de Aviz. A nossa ruína foi porêm o preço do maior acto da civilização nos tempos modernos.

Luís de Almeida Braga, O mar tenebroso (1918), pp. 145