quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Everything Invaded

A ternura, o desejo e nós, o medo, estávamos definitivamente soltos. O mundo existia em cada um dos momentos. As palavras estavam dispostas sobre os objectos que nomeavam. Ele e ela, ao olharem-se, atravessados por tudo, poderiam ter dito a palavra amor. Era uma palavra que estava diante dos seus rostos, misturada com os seus olhares. Mas, por isso, era uma palavra que já não poderiam saber porque, a partir desse momento, nós atravessámo-los para sempre. E nem ele, nem ela sabem o significado mais profundo daquilo que os invade. Os homens não sabem o significado daquilo que os invade. A terra sabe. O sol sabe. O tempo sabe. Nós sabemos.

José Luís Peixoto, Antídoto

segunda-feira, 23 de novembro de 2009




Tu, florista, dizes que tens de todas as flores à venda. Sempre que o disseres estarás a mentir: porque nunca estarás tu à venda. Há coisas que não têm valor, e a primeira é o teu amor: que preço dar por algo perante o qual o ouro não passa de latão? Dá-me uma rosa, imaginarei que é a tua, e os seus espinhos serão os teus nãos.



sábado, 21 de novembro de 2009

The underground


[Para ser acompanhado do Maldoror dos Mão Morta]



 Dizem que existe um lugar onde tudo é diferente, o que aqui é bom, lá é mau, e da mesma forma que aqui não há nada mau, lá também não há nada bom. É o oposto deste mundo, e lá tu não gostas de mim, lá eu sou um pobre louco amarrado a uma cama e a ser sedado pelo médico de cada vez que tu, aqui, me olhas e sorris e iluminas tudo.

Vieram dizer-me que já estava em condições de te visitar no céu que habita em ti. Valeu a pena? Vê: já sei amar sem esperar nada em troca.

E ela já sabe o que vai acontecer entre nós? Está de acordo com o que eu vou sofrer por ela? Para que tudo suceda da forma mais natural possível, a ela basta-lhe por agora saber de quem vai gostar: o resto terá as suas consequências daí. Por não ser de ti que vai gostar é que melhor podes compensar esse teu passado; mas se soubesse de antemão o que te vai provocar, a tua experiência não seria a mesma, porque ela iria evitar ao máximo que outra pessoa sofresse por ela.

O nosso mundo é uma gota no oceano Universo; para nós ele é um oceano do qual somos apenas uma gota.

És linda. Tudo em ti é harmonia, pensar em ti preenche-me o ser quase até explodir. Tenho a certeza de que, se não existisse "ela" primeiro, seria por ti que, hoje, o meu coração viveria.

Atrais-me, despertas em mim um cocktail de hormonas que não me deixa em paz enquanto não as libertar; mas não gosto de ti. Serves para eu ainda me sentir vivo, és um corpo que eu descubro com luxúria. Mas logo que chegamos onde queremos, tenho de ficar uns tempos sem te ver. Depois a gente fala.

Não, espera, pára, espera, pára com isso: não chames sentimentos despropositados. Que amor, que paixão?! É melhor não falarmos mais nada. Vamos fazer isto como se fôssemos dois animais.

Gostaste?, foi bom? Olha, vai-me buscar uma cerveja.

Não és igual a ela, nem parecida com ela, apenas os teus olhos me atraem. Desta vez, só quero usar a tua cara.

Só estou a falar contigo porque gosto do que vejo. A noite não vai acabar sem que as minhas mãos tenham passado por aí. Não és como ela, e por isso para mim não és nada.

Faz lá o que tens a fazer, mas não te ponhas à frente da televisão, quero ver o jogo (há tanto tempo que não a vejo). Nunca permitiria que a pessoa que amo descesse ao ponto de fazer o que me estás a fazer. Não pares.

Nessa noite estava a sair dum bar obscuro acompanhado por dois corpos femininos embriagados, quando num carro que passava do outro lado da rua, olhando-me fixamente nos olhos, ao fim de tanto tempo, a vi.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

(...) a antiguidade classica, a verdadeira e unica civilização para chegar á qual o mundo foi obscuro desde a sua creação, e depois da qual tornou a escurecer! Tudo antes d'isso foi pre-historico, tudo depois d'isso foi proto-historico!

Fernando Pessoa

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Quando Darwin explicou que o homem descendia do macaco, muitos entenderam ter-se alcançado a prova derradeira de que Deus não existia, porque tal descoberta punha em questão todas as palavras da Bíblia. Mas o que os homens não perceberam foi que nada era mais apropriado, ao acabarmos de subir o primeiro degrau da escada eterna da evolução, e que culminou com a aquisição da racionalidade, nada era mais adequado aos nossos deveres neste planeta do que um fato-macaco: tínhamos que trabalhar...

(a Bíblia, embora emitida das esferas superiores da espiritualidade, foi recebida por homens diferentes de nós, hoje, e toda a mensagem foi condicionada por isso: foi dita da forma mais compreensível, e foi recebida da melhor forma possível. E não veio o homem do macaco; o homem veio coabitar com os animais que floresciam na Natureza, e Deus adaptou para nós o invólucro mais adequado aos nossos espíritos)

domingo, 25 de outubro de 2009

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Duas dezenas de minutos à tua espera e continuas sem existir. De todos os lados: das ruas que fogem desta esquina para o infinito da noite; dos elementos móveis, mecânicos ou orgânicos, que trocam rápida e individualmente de lugar no espaço; na ininterrupção de tudo - há o dizer-me constante da tua ausência. Não estás ausente por partires, nem por ainda não teres chegado: estás ausente porque és ausente. O mundo inteiro dobra incessante a linha que os homens sonham à volta do sol, continuará a fazê-lo por mais algumas vezes, e todas essas vezes em que eu vou ter noção disso (presente ou latente) tu não serás. Houve um tempo na minha vida em que sabia da tua existência nos outros, mas era uma coisa tão própria dos outros que te via como um adjectivo deles; os outros eram os outros, e nos outros havias tu. Depois descobri a noção de que eu era, para os outros, uma parte dos outros de que eles não faziam parte. A ingenuidade com que a verdade era recebida por mim destruiu-se a partir do momento em que me desenvolvi pessoa. Evoluí de ser apenas as imagens que passavam no filme do mundo para ser um volume, algo que ocupa espaço e tempo e consome recursos. O desenho que fugia do espelho e que era eu era também carne e osso como todos os outros corpos viventes. O que eu fazia também eles podiam fazer, e eu também podia fazer o que eles faziam. Mas as coisas não funcionam assim... Os outros fazem o que podem fazer porque tu estás neles, com eles, partilha-los. Sou igual a eles em tudo, excepto que tenho uma leveza mais pesada: não estares na minha vida é fisicamente um alívio da massa interna e externa, mas é um pesar constante no coração. Mesmo nos outros em que não reside ainda a consciência de existirem - aí te encontro, à distância a que posso, e aí te vejo vigorar em toda a tua amplitude; comigo é que tens essa atitude de afastamento, melhor, de desaparecimento, toda a vez que me procuro aproximar de ti. Porque houve um tempo, houve vários tempos, houve muitas voltas à volta do sol em que eu andei às voltas em torno de mim mesmo, e quando devia ter-te nutrido em mim sequei as tuas raízes no meu coração. Agora colho o deserto, ainda que rodeado da fertilidade com que te fazes presente nos outros. Fui pródigo de ti, e agora estou naquele momento em que o filho, na parábola, acordou no meio da miséria e, antes de partir para a casa do pai, e antes mesmo de decidir partir, se examinou a si mesmo e foi o seu próprio juíz no julgamento em que reviveu todos os seus excessos. E nesses excessos descubro que não foi apenas contigo que arranquei as folhas para passar sobre elas, e que arranquei os ramos para me sentar sobre eles, e que desfiz as raízes porque destoavam no meio do prazer da aparência. Mas neste momento, tenho que tratar da remissão para contigo.


Havia muita gente, mas não havia ninguém. Todas as pessoas que amontoavam o espaço eram roupa num corpo vazio, viviam para ter o corpo que pudesse vestir a roupa, e isso era o importante. Inadmissível alguém passar sem pelo menos mais do que um saco de compras, bem grande, bem cheio. Inaceitável uma mulher que não trouxesse roupa visivelmente cara e nova, um rosto carregado de produtos de Paris, ou o cabelo tão artificial como só os coiffeurs conseguem fazer. E no meio deste mundo à parte de todo o resto do mundo, neste mundo em que mesmo o mais materialista dos homens se sentiria um profeta de qualquer religião metafísica, por entre esta floresta de consumo, passas tu, com esse corpo esguio como os traços rápidos de um estilista. Tu, que, apesar de compores este quadro abominável onde não existe Deus, não existe a simpatia de um sorriso fraterno, onde a caridade é algo em que simplesmente não se pensa, apesar de tudo, és linda. Podes ter o cérebro cravado com o verbo "comprar", mas os teus olhos, a curvatura do teu rosto, a leveza das tuas pernas - fazem-me ter pena de saber que és produto desta mentalidade. E por isso mesmo, infelizmente, para além de não haver uma gota do teu sangue que diga humildade, talvez também a simples percepção, mesmo que seja, da excelência das formas do teu barro ainda te afunde mais na ilusão de superioridade que a beleza frugal e fugaz proporciona. Podias ser belíssima, se esses olhos carregados de um azul celeste tivessem de facto um bocadinho de céu: mas são azuis como as irrelevantes notas de €20, e os teus lábios rosados só sorriem perante o talão de compra.

Os Sonhos





Eu estudava os quadros ambientes, com justa estranheza. Sempre cuidadoso, Aniceto veio ao encontro de nossa perplexidade.
- Os Espíritos encarnados - disse -, tão logo se realize a consolidação dos laços físicos, ficam submetidos a imperiosas leis dominantes na Crosta. Entre eles e nós existe um espesso véu. É a muralha das vibrações. Sem a obliteração temporária da memória, não se renovaria a oportunidade. Se o nosso campo lhes fôra francamente aberto, olvidariam as obrigações imediatas, estimariam o parasitismo, prejudicando a própria evolução. Eis porque raramente estão lúcidos ao nosso lado. Na maioria dos casos, junto de nós, permanecem vacilantes, enfraquecidos... Vejam aquela jovem senhora encarnada, em conversa com a vovózinha que trabalha conosco, em "Nosso Lar".
Assim dizendo, Aniceto indicou um grupo mais próximo.
A anciã, de olhos brilhantes e gestos decididos, abraçava-se à neta, lânguida e palidíssima.
- Nieta - exclamava a velhinha, em tom firme -, não dês tamanha importância aos obstáculos. Esquece os que te perseguem, a ninguém odeies. Conserva tua paz espiritual, acima de tudo. Tua mãe não te pode valer agora, mas crê na continuidade de nossa vida. A vovó não te esquecerá. A calúnia, Nieta, é uma serpente que ameaça o coração; entretanto, se a encararmos de frente, fortes e tranqüilas, veremos, a breve tempo, que a serpente não tem vida própria. É víbora de brinquedo a se quebrar como vidro, pelo impulso de nossas mãos. E, vencido o espantalho, em lugar da serpente, teremos conosco a flor da virtude. Não temas, querida! Não percas a sagrada oportunidade de testemunhar a compreensão de Jesus!...
A jovem senhora não respondia, mas seus olhos semilúcidos estavam cheios de pranto. Demonstrava no gesto vago uma consolação divina, recostada ao seio carinhoso da devotada velhinha.
- Esta irmã se lembrará de tudo, ao despertar no corpo físico? - perguntei, intrigado, ao nosso orientador.
Aniceto sorriu e esclareceu:
- Sendo a avó superior e ela inferior, e, examinando ainda a condição dos planos de vida em que ambas se encontram, a jovem encarnada está sob o domínio espiritual da benfeitora. Entre ambas, portanto, há uma corrente magnética recíproca, salientando-se, porém, que a vovó amiga detém uma ascendência positiva. A neta não vê o ambiente com precisão, nem ouve as palavras integralmente. Não esqueçamos que o desprendimento no sono físico vulgar é fragmentário e que a visão e a audição, peculiares ao encarnado, se encontram nele também restritas. O fenômeno, pois, é mais de união espiritual que de percepções sensoriais, própriamente ditas. A jovem está recebendo consolações positivas, de Espírito a Espírito. Não se recordará, despertando nos véus materiais mais grosseiros, de todas as minúcias deste venturoso encontro que acabamos de presenciar. Acordará, porém, encorajada e bem disposta, sem poder identificar a causa da restauração do bom ânimo. Dirá que sonhou com a avó num lugar onde havia muita gente, sem recordar as minudências do fato, acrescentando que viu, no sonho, uma cobra ameaçadora, que logo se transformou em serpente de vidro, quebrando-se ao impulso de suas mãos, para transformar-se em perfumosa flor, da qual ainda conserva a lembrança agradável do aroma. Afirmará que soberano conforto lhe invadiu a alma e, no fundo, compreenderá a mensagem consoladora que lhe foi concedida.

André Luiz, Os Mensageiros (psic. Chico Xavier)

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Paro um momento, e reparo no pouco de ti que, de casa, consigo ver. Cá fora, sentada na bancada de madeira, velha como tudo, olhas o horizonte que se vai diluindo no branco que te escorre pelos olhos. Tens o corpo estragado pelo trabalho contínuo de tanto anos esforçados; a boca, onde os dentes foram morrendo com a vida, treme senil; as mãos fatigadas, irremediavelmente doentes, com as veias muito escuras a quererem rasgar a pele baça e quebrada. De que valeu, nos alvores da existência, quando o corpo é incapaz de se dominar, ter-te dito que eras a mulher da minha vida? Foi para isto que nos demos um ao outro? O gosto de sentir um corpo tenro e perfeito; de descobrir um cantinho dos lábios onde o beijo saiba melhor; de pousar a mão trémula no teu joelho, sabendo que te arrepia os lugares mais profundos do ser; tudo isso é cinza dispersa pelo vento, se se chega às nossas idades e nada há de mais substancial que faça ainda persistir o amor. Satisfizemo-nos, mas não nos dedicámos um ao outro, e assim agora somos a miséria viva de um castelo que se tivesse posto sobre a areia do deserto. É por isso que tenho vergonha de estar ao pé de ti: o estado deplorável em que estás por causa dos erros que estavam reservados para mim, mas que eu tive a desumanidade de te arrastar para eles, roubei-te à paz que te aguardava no equilíbrio de uma vida simples e trouxe-te presa pelos turbilhões do meu destino. Se eu soubesse que iríamos acabar numa casa podre e em ruínas como nós estamos, se soubesse o entusiasmo pueril de uns momentos da vida que rapidamente se perderam no nevoeiro do passado, se soubesse que a felicidade que te prometi era a felicidade que te estava a tirar - nunca teria chegado ao pé de ti, naquele dia chuvoso há tantos anos, e não te teria dito "gosto de ti".
Quando soube que em ti se dava o milagre da vida, a alegria foi imensa, preencheu-me o ser, trouxe-me novas razões para viver. Passávamos os serões a projectar futuros, e as nossas bocas eram ternuras e carinhos que ansiávamos por lhe poder dar. Desde sempre o encarámos como a expressão humana do nosso amor, e tudo o que ele fosse no tempo que lhe fora dado seria sempre o reflexo do que era o nosso amor, sem as ilusões do comodismo que nos enganassem. As nossas vidas eram a vida dele, fazíamos os nossos horários, geríamos os nossos compromissos em função dele. Os nossos tempos livres eram para que ele fosse feliz. Não o carregávamos de mimos nem lhe cumpríamos as vontades todas, mas o sorriso na cara dele era a nossa satisfação. Demos-lhe o melhor que tínhamos. Cresceu com a sensibilidade e a inteligência da mãe, e soube aproveitar os fracos momentos em que o pai descia à realidade. Aprendeu comigo a desconstruir as ideias pré-estabelecidas, mas aprendeu contigo a criar as suas próprias ideias sem a influência de ninguém. Comigo foi diferente; contigo foi superior. Às vezes, quando o íamos buscar à escola, enquanto ele vinha ter connosco, o meu braço em volta dos teus ombros era mais intenso, e o meu sangue era um arco-íris de cores maravilhosas. Agora, não tenho sequer força para estar de pé. Diante de nós, o corpo do nosso filho a apodrecer na morte. O teu rosto desfigurado por um pranto indescritível - não há palavras. Não pode haver pensamento, sentimento, a Razão que faz de nós bichos pensantes, tudo isso morreu com ele. A sua morte é o morrer de uma parte de nós, mas fica a lucidez crua e permanente para sentirmos sempre a ausência do que se perde. O meu coração é uma bola de mágoa que asfixia o peito, e do imo do ser efervesce uma náusea, como se também as entranhas agonizassem com o peso da dor.

domingo, 4 de outubro de 2009

Estas pedras toscas em que me sento, que se multiplicam às centenas por esta terra de areia áspera e seca - outrora tudo isto foi lindo, foi magnífico; em tempos houve aqui um grande templo, à volta do qual floresceu uma grande civilização. Agora só restam as suas ruínas. Nesse templo imenso, coberto de ouro e zelado por infinitos sacerdotes, venerava-se a deusa-mãe, a entidade a quem se atribuía a criação de tudo, desde o bichinho mais pequeno até aos grandes astros distantes do Universo. A vida de toda esta gente passava em função dos rituais de devoção e culto a essa deusa, e para poderem identificá-la melhor compuseram-na à imagem dos homens; mas como era a perfeição, fizeram-lhe, nos blocos de pedra, a representação mas perfeita do que pode ser um ser humano sem defeitos. Esse povo vivia na esperança da vinda dessa mãe, dessa origem imaculada, até junto deles; constantemente lhe rogavam a pedir que viesse, precisavam pelo menos de uma prova da sua existência, não era apenas o mundo, era também a razão de aquele povo viver, que queriam ver explicado, demonstrado de forma divina. Esta esperança e esta expectativa aumentavam ainda mais sempre que o oráculo do templo afirmava que essa deusa, na sua forma mais pura, estaria um dia no meio de todos nós... O tempo passou, a divindade foi adiando sempre a sua visita, e o seu povo foi-se deixando levar pela adoração de deusas mais inferiores, que garantiam a fascinação de se manifestarem de forma mais concreta, de serem mais imediatas nas respostas aos pedidos que lhes eram feitos. Algumas tiveram os seus profetas, e também as suas próprias aparições. Aquela deusa primordial foi caindo no esquecimento, até se extinguir qualquer réstia da devoção que, outrora, o povo lhe reservara. Como os homens são impacientes! Perderam-se no amor de deusas que não tinham a mesma importância, a mesma elevação que a deusa mais perfeita que dantes adoravam; estas pequenas divindades eram interesseiras, manipuladoras, egoístas, e emocionalmente sádicas. Nunca a outra desceria tão baixo... Mas essas pelo menos eram palpáveis, havia provas da sua existência. Os homens não souberam esperar por ti, que decidiste vir agora com esse corpo perfeito e sem impurezas que só tu podias ter. És tu, é o teu rosto que encontro nas estátuas em ruínas deste lugar que sou eu.
As tuas sobrancelhas, com os pelinhos finos, alinhados, pequeninos, pretos sobre a pele lisa e branca. O teu olhar brilhante como uma gota pura de orvalho, quando o sol fresco da manhã a atravessa. A amálgama de cores nos teus olhos, como se dançassem a perfeição da tua beleza. É nestes dias, quando libertos dos afazeres que nos consomem as horas consignadas à vida dos homens, nestes dias, chova ou faça sol lá fora, é quando eu, bem junto de ti, vou olhando todos os pequenos pormenores do teu corpo, todos os detalhes que fazem de ti o que és, enquanto com as pontas dos dedos vou acompanhando os teus contornos. Desprendidos na cama, como dois náufragos que por fim encontraram uma ilha tropical, recuperamos das navegações tempestuosas da noite anterior.
Uma certeza imensa, um abismo, dizia-lhes que aquele era o momento em que podiam começar a viver. Foram felizes naquele momento e, na terra, no sangue e na verdade das suas mãos, acreditaram que poderiam ser felizes para toda a vida.

José Luís Peixoto, Cal

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Em intervalos cada vez mais breves, o tecto do quarto desaparecia por trás do teu corpo ofegante. As minhas mãos agarravam agora com mais força a pele húmida das tuas coxas. A tua boca, próxima da minha, expirava o prazer, que corria, como o sangue, pelas tuas veias, e que entrava no meu corpo, pela respiração afectada de quem era apenas a ideia de atingir o máximo no momento certo

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Naqueles dias, o sol clareava com o seu calor as cores fortes e nítidas do jardim por onde costumávamos passear pela tarde. Em passo lento, a tua mão pousada no meu braço e o ritmo igual dos pés que com vagar se sucediam, e num ou noutro canto um criado que se prontificasse a receber alguma ordem nossa. Só o resfolhar do teu belíssimo vestido fazia som suficiente para igualar os esparsos pássaros que dançavam de árvore em árvore, ou as pequenas frases que trocávamos. Éramos monotonamente felizes, e por isso éramos tudo menos felizes. São imagens desse tempo que me ajudam a distrair das grandes tormentas que vou passando aqui no novo mundo para onde fui levado depois de morrer. Demorou perceber que morrera, demorou perceber por que leis se rege este lugar - e acabei por me adaptar à dor. Deve haver também um lugar onde as pessoas são felizes, deve haver também maneira de se voltar para a Terra: mas por agora quero desfrutar do conforto que tenho conquistado aqui, já há um certo respeito por mim, o governador deste lugar tem-me convocado mais vezes que o normal para fazer parte da comissão de acolhimento aos recém-chegados. E foi precisamente uma dessas almas perdidas que me deu uma notícia que me tem deixado profundamente abatido. Não sei como essa velha mulher (que nunca mais vi) soube que eu e tu nos conhecemos, e que fomos o que fomos, mas ela, assim que me viu, disse-me que tu estavas na Terra, agora longe do país onde tu e eu fôramos brandamente alegres - e que eras infeliz. Que tudo na tua vida se entrançava de forma a complicar ainda mais os teus dias, que acabavas sempre por ficar longe dos que amas, e rodeada de pessoas que desejavas nunca ter que conhecer. Que ninguém te dava o devido valor, que não tinhas satisfação em nada, e que só com grande sacrifício conseguias, de tempos a tempos, sorrir. Foi esta notícia que me tem andado a ponderar seriamente deixar este sítio onde afinal tanta gente sofre (e onde eu sobrevivo à custa desse sofrimento), e passar o que for necessário para prover que sejas feliz. Tenho de ser capaz de te devolver algum alívio de tudo o que estás a viver, e para isso tenho que mudar, tenho que pelo menos voltar à Terra. Que há para fazer?

sábado, 26 de setembro de 2009

Estes homens imorais e abjectos que me rodeiam revezam-se diariamente para me bajularem o anel do dedo, enquanto me encho de tédio no trono. Mais interessante me parece o sol, que vai, morno, embora uma vez mais. Afinal, no fim de todas as aventuras que fiz para chegar aqui, não havia o que sonhara, o que a mim mesmo, cego pela ambição, me prometera. Se o soubesse, teria sem muita hesitação abdicado de todo este ouro que não me cabe nas mãos nem na vista - quanta gente morreu para que eu agora pudesse passar enfastiado por entre estes tesouros sem vida? Como invejo, secretamente, o rapaz dos estábulos reais! Por vezes, disfarçado, sigo-o, e fico escondido num casebre ao lado do seu a observá-lo: todas as noites tem a mulher que o espera, dois meninos que lhe chamam pai - tem uma família que o ama, tem vidas que vivem para ele. Na escuridão do lugarejo em que vou vendo tudo isto, fico a imaginar-me assim... daria tudo o que tenho para ter ao menos uma companheira que me dissesse amor, ter uns olhinhos pequeninos a absorverem avidamente os ensinamentos paternos que eu lhes desse... De que me valeu ter usurpado à força o reino aos meus irmãos, ter levado o meu povo a duras guerras civis, ter dizimado as terras das nações vizinhas, se agora, afundado em riquezas e vítima do interesse de homens que não interessam a ninguém, estou só? Ah, meu rapaz! Queixas-te da miséria da vida precária que levas: mas percorre-la acompanhado, tens o apoio de pessoas que te amam. A tua vida é de miséria, mas tu não és miserável, eu... quem me dera ao menos a miséria: sempre teria qualquer coisa a sério na vida, a que chamasse minha.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Pagaram-me uma quantia considerável desse metal vilmente precioso, a que chamam dinheiro, por ceder os meus melhores escravos, aqueles com mais capacidades atléticas, para o espectáculo da morte no anfiteatro de Roma. Não fui assistir ao dia em que eles actuaram (e em que foram mortos) - estava um calor daqueles que chamam para uma boa temporada de ócio no campo, e por isso passei umas semanas na minha vila, longe do ruído da cidade. Só me lembrei deles uma vez, no caminho, ao ver os outros escravos que me acompanhavam: não me tinham faltado à fidelidade, haviam sempre obedecido ao que lhes mandava, eram capazes de dar a vida por mim e pela minha família - mas eu já estava farto das caras deles; queria agradar ao novo imperador; e depois, tudo o que rende dinheiro é sempre bom: aproveitei e comprei novas escravas, algumas já adultas, mas a maioria naquelas idades em que o corpo ainda é tenro e delicado. Os cabelos louros, quase brancos, e a pele lisa das bárbaras do norte longínquo deixavam-me sempre perdido de desejos. Gozei, portanto, de uma estada aprazível na minha casa de campo, com as minhas novas aquisições, e nunca mais me lembrei dos que vendera. Trezentos anos depois, era enterrado vivo no gelo invencível da Sibéria, acabando-se uma vida carregada de sofrimento e nulificação às mãos de senhores sem escrúpulos. Começava aí o cumprimento das muitas dívidas que ajuntei; hoje, faltam ainda tantas...

terça-feira, 22 de setembro de 2009



A carta onde me informam de que me autorizam a inscrever no Mestrado de Clássicas, na UCL. Até as propinas são mais baratas...


Uma nova etapa que se aproxima.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Podes até ir no mar de gente que passa por mim, mas sinto-te longe - porque não estás aqui para preencher o vazio do meu coração. Não quero estar aqui, nem nos lugares onde não estás; estaria aqui com todo o gosto, se também estivesses; mas de ti só há neste momento, neste lugar, nestas ruínas que sou, só há a tua ausência. Mais ninguém me dá a alegria que tenho quando te vejo, quando posso mergulhar o meu ser na visão do teu. Ninguém é como tu, seria difícil para um pobre mortal querer atingir a tua altura. Tudo isso me dói, porque se eu ando no meio deles, e tu não, se eu pertenço ao grupo das gentes que nunca serão como tu, é porque eu sou como eles, sou tão ingrato de ti como todos. Mas tenho algo que os outros não têm: gosto de ti, admiro-te mais que a tudo. O que é que de especial isso me pode dar? A dor de sofrer por ti. Nestas ruínas que outrora já foram majestosas, coloridas, alvo de admiração de milhares de pessoas, defendidas até à morte da cobiça de gentes estrangeiras - por entre estes bocados de pedra quebrados ou agastados pelo tempo, às vezes parece-me que algum pequeno cálculo tem os ângulos curvos dos teus olhos de amêndoa: mas não são os teus olhos, não têm a cor que tu tens quando ris, quando a tua boca se rasga dessa forma única. Depois, a sombra que alguns bocados, ainda em cima de outros, fazem, que ao vento brando e seco parece ter a forma da tua quando andas e transportas contigo a beleza que só tu tens. Estás constantemente ausente no meu pensamento.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Só não me esquecia do mundo por causa da chuva. Algures entre a água a escorrer por nós e o teu olhar, a minha alma perdera-se numa luz intensa e interminável que dava a ilusão de nada haver antes e depois de si, como se tudo o que existisse fosse aquilo. Era a luz que saía dos teus olhos, que se insinuava no teu sorriso, que palpitava nas tuas mãos. Um dos momentos altos da infância do meu espírito.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O cheiro frio dos corredores de pedra
a ecoarem as vozes e os gritos que
se amontoavam ao pé das portas
O riso incomodativo das raparigas
O entusiasmo eufórico dos rapazes a exibirem-se
O sol lento, alheio na sua solidão
à solidão de quem também está só
O incómodo de termos de participar
nas aulas, nos intervalos, nos almoços
A tendência de querer estar taciturno e
quieto enquanto todos correm e jogam
E sem muito esforço os testes fáceis e os
exercícios não muito desafiantes
Mas o complexo de ser menos que os
outros nas aulas de desporto
O alheamento quando pensava em ti
nos textos pueris que queria escrever
O pasmo ao ver todos os outros,
todos sem excepção, fazerem coisas
completamente inconcebíveis, mas que
eram aceites com toda a normalidade,
o respeito pelos outros inexistente
a sinceridade nas palavras inexistente
o gosto pelo bem estar dos outros inexistente
ódios, intrigas, decepções - o futuro duma
sociedade que teimava em não se renovar
(os professores, porque faziam parte dessa
sociedade, não contrariavam a tendência)
O desejo, contudo, de estar com os outros,
viver com eles uma vida que sozinho não tinha
conhecer como eles lidavam com os problemas
mas que para eles não o eram sequer...
Longe dos tempos em que eu olhava para ti como se fosses (e eras) o resumo dos meus desejos em corpo de gente, e como se mais nada fosse suficiente para que eu vivesse; agora dou conta de uma parte de mim a desaparecer. Começou com um ardor forte no peito, depois a mão esquerda começou a desaparecer, de seguida o antebraço, e agora já está no ombro. Esquecer-te não é o que tenho de fazer, porque fazê-lo é perder a própria vida. Desde que existo, e se calhar até um pouco antes, nesta vida o propósito era ter presente, em todos os passos, o teu olhar. Apesar das atribulações da vida, que trata a todo o momento de me fazer cruzar com as pessoas mais improváveis, mas que são quem tem de ser, o destino conseguiu empurrar-nos para o mesmo local, na mesma altura. Foi aí que a minha vida mudou, mas os pontos comuns com o passado que magoava de morte quem o não entendia levaram-me a ver-te com as mesmas lágrimas que trazia ainda de épocas obscuras. Não sei, porém, ser assim. Tu não és como os monstros titânicos dessa barbárie pré-olímpica, tu és anacrónica. O meu erro foi querer-te agrupar com os outros mortais - mas tu não estás aqui para matar, vens dizer o que é a vida, e como a devemos viver. Eu devo viver a minha perdido no teu rosto, e no amor que tenho por ti. Porque, mesmo inconsequente, é preciso.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Andei perdido no Google só para conseguir descobrir esta pérola de toda a história da Anime... Quantas noites me deitei a altas horas só para ver esta série no Locomotion (quando a Cabovisão ainda tinha este canal), e rir como um doido quando dava as cenas da Excel a querer comer a Menchi... Este vídeo devia fazer parte da cultura geral de toda a gente!

quinta-feira, 16 de julho de 2009

É complexo e parece, ao mesmo tempo, impossível. Só te vejo como alguém a quem amo, mas de quem não consigo ser desinteressadamente amigo. A amizade contigo é sempre um meio para algo mais, na relação entre nós há, para mim, sempre a tendência para não ficar apenas como teu amigo: quero sempre, e de forma automática o faço, mais.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

A luz vai morrendo devagar nos lençóis amarrotados e dispersos, que mal chegam para nos cobrir. No quarto, na sala, na cozinha - em cada lugar da casa há marcas da nossa passagem, quando perdidos um no outro dançávamos as nossas sensações na ternura ébria das pequenas carícias


Conheceram-se no sítio X. Ele ficou perdidamente apaixonado por ela. Houve alturas em que a amou, mesmo. Convidou-a para um festival de Verão, coisa que ela entendeu como um gesto bonito, simpático, nada mais. Mas ele falava a sério, e por isso lhe deu um bilhete para o dia que, julgava ela na brincadeira, haviam marcado. Pelas voltas da vida, ela teve de lhe dar um banho de água arrefecida com o gelo da realidade, e ele, para não querer sujeitá-la mais àquelas situações embaraçosas e desnecessárias, pediu-lhe a ela que não lhe falasse mais. Acontece que, mesmo que quisessem ir e o destino tivesse aprovado que eles estivessem de bem nesse dia, não poderiam ainda assim ir ao festival: porque havia trabalho a fazer no sítio X. Irónico, mas, apesar de mal se verem, estiveram sob o mesmo tecto nesse mesmo dia, apenas não onde queriam, mas onde realmente eram precisos.


terça-feira, 26 de maio de 2009

Pousas nos meus ombros as mãos agastadas pelos dias, e os braços perdem-se no cansaço. Um suspiro teu, quase inaudível, pergunta-me o porquê de tanto trabalho. Minha linda, deixa-me abraçar-te: acompanha as minhas mãos que atravessam as tuas costas e se cruzam bem na coluna, e depois dançam lentamente por todo o teu tronco. Assim bem perto, olhamo-nos nos olhos um do outro, entramos um no outro até às almas que se amam, e aí descobrimos que somos parte do Universo sem fim. Tal como ele é acção constante e harmoniosa, assim temos também de ser. O trabalho é o nosso treino para sermos infinitos. Temos de ser cada um o seu próprio Universo, infinito de beleza e perfeição, para podermos ser parte do todo a que pertencemos. O melhor exemplo para tal é Jesus, e o primeiro bem infinito que eu e tu partilhamos é o amor do reino que não é deste mundo.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

No teatro do mundo, a minha passagem actual não foi desenhada com a tua; os nossos caminhos nunca se cruzaram. E no entanto é a tua energia, é o teu amor que, maravilhado, vejo diluir-se no contributo da nossa Terra para o progresso da Criação. Possa eu um dia conseguir dar aos outros a imensidão que tu nos dás; e que a beleza sem fim que vejo emanar de ti (porque assim és), eu desejo que não seja nada perante tudo o que ainda serás! Incessemos o milagre da partilha dos mais nobres sentimentos com que Deus, ao gerar-nos para o Infinito, nos dotou. Finalmente nos libertamos da distância para onde nos projectámos quando nos afastámos dEle; a pouco vamos ganhando, pelas nossas lutas, pela aplicação das leis insuperáveis do Universo, alguma paz; e tudo aquilo que nos é mais precioso à luz da vida sem fim, tudo isso daremos a todos quantos ainda vagueiam na incerteza. Nada do que nos é dado é para nós; é-nos dado para partilharmos - porque também foi partilhado para nós: é esse o exemplo máximo do Cristo, na convivência da sua Ceia.
Os teus modos são uma caixa onde escondes a fraqueza que, tal como eu, tens. A toda a hora me agrides, me feres a integridade, mas naqueles momentos que menos esperas mostra-se a tua infância. És ainda uma menina, num corpo cravado de vida difícil; eu sou um menino num corpo ainda sem vida como a tua.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Daquele lugar não me lembro senão dos rios que cortavam as terras, da luz da noite a mergulhar na água e a voltar para todos os que a viam. Esses momentos mágicos em que os teus pés passeavam ao lado dos meus, a minha mão estava na tua, e os nossos corpos eram um só, eram aquilo a que chamávamos amor. O que mais estimava eram mesmo essas noites. Mas agora, que estamos onde não há dia nem noite, onde o tempo não pára nem anda porque não existe, aqui no espaço sem fim em que somos aquilo que somos e nada mais, agora te posso dizer de verdade que te amo. Porque se já naqueles tempos o corpo frágil e grosseiro apenas podia entrever a imensidade deste sentimento que somos na eternidade, não há nada como poder assumir tudo isso sem a cegueira de um cérebro ainda desejoso de instintos. Quanto às amarguras... que é feito delas?