segunda-feira, 9 de abril de 2012

Ex imis



Sentado sobre o húmido, lamacento, revolvido pela guerra, escuro solo que banham as tépidas águas da costa da Tróade; sob um céu escuro, carregado, mas vazio, vejo um par se aproximando de mim. Apenas a minha tenda, a que me encosto, me impede de tombar pelo meu desespero e desejar ali logo a chegada do momento breve. Vêm não porque querem, esses dois arautos fiéis. Farão o que não querem, esses homens devotos. Cumprirão o que não desejam, esses homens límpidos. Aqui dentro, feliz, vive Briseida a sua vida na minha. Nunca me desejou antes do saque; nunca pensara, sequer, que eu pudesse existir. Admiro a sua lealdade para comigo. Foi forçada sem contestação, sem se ouvir a sua palavra, a me pertencer, mas conseguiu ser feliz assim. Passam diante de meus pés os grandes momentos em que ela, silenciosa, terna, autêntica Afrodite antrópica, delicadamente deslizando, chega a meu leito; os grandes nadas de que é feito o dia-a-dia, durante os quais olhares se tocam, ombros se sentem, palavras se ouvem. Sobretudo, a primeira noite após a nossa vinda de Tebas. A sua magia, que dizem morrer numa mulher logo que tomada por um homem, que me parecia impossível existir em corpo mortal com tal intensidade, e que estava maior ainda quando a Aurora lhe clareou a face. Mas são soprados para longe esses pensamentos pela figura dupla que advém. Não sabe ela, ainda, que está prestes uma mudança terrível na sua vida. Ainda, zelosa, me cobre o leito de pétalas de rosa... Com olhar apavorado, pergunta-me, silenciosa, que se passa. Nada posso fazer senão vê-la partir. Não consigo, nem devo enfrentar aquele que é mais que eu. Minha Briseida vai de mim. A cumplicidade entre nós, quase de soberana para servo, desmorona-se ao lado do meu coração, e da minha honra. Inerte, vejo aquela que faz parte da minha casa ser-me levada a braços até aquele que me enfrentou publicamente e provou a todos que também sobre mim ele dita seus quereres. Mas a raiva que aqui tenho, aqui onde outrora foi coração, a bílis que se me alastra por todo o ser, não me deixam conformado. Não mereço. Sei que fiz Briseida feliz. Sei que não pus em risco o estatuto daquele que empunha o ceptro. Apetece-me ficar longe, sozinho.

quarta-feira, 4 de abril de 2012