terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Métrica



Todos quantos escreveram em metro, em rima ou em estrofe, sabem que esses elementos regulares sugerem coisas que não estavam no pensamento original, sabem que são elementos activos em compelir o pensamento e a sua expressão a seguir um caminho que, salvo eles, não seguiria. Ora, se eu sinto profundamente uma coisa e a quero dizer profundamente, para que os outros a sintam profundamente, não quero ser desviado dessa profundeza com que sinto porque a palavra «amor» não rima com a palavra «queijada», ou porque «cebola» tem que ser «nabo» num ponto onde só cabem duas sílabas, ou porque «ontem» é um espondeu e tenho que pôr «pálido» para dar dáctilo.

Álvaro de Campos

sábado, 1 de dezembro de 2012



— Souvent, me dit-il, en parlant de ses lectures, j’ai accompli de délicieux voyages, embarqué sur un mot dans les abîmes du passé, comme l’insecte qui flotte au gré d’un fleuve sur quelque brin d’herbe. Parti de la Grèce, j’arrivais à Rome et traversais l’étendue des âges modernes. Quel beau livre ne composerait-on pas en racontant la vie et les aventures d’un mot? Sans doute il a reçu diverses impressions des événements auxquels il a servi ; selon les lieux il a réveillé des idées différentes; mais n’est-il pas plus grand encore à considérer sous le triple aspect de l’âme, du corps et du mouvement? A le regarder, abstraction faite de ses fonctions, de ses effets et de ses actes, n’y a-t-il pas de quoi tomber dans un océan de réflexions? La plupart des mots ne sont-ils pas teints de l’idée qu’ils représentent extérieurement? À quel génie sont-ils dus! S’il faut une grande intelligence pour créer un mot, quel âge a donc la parole humaine? L’assemblage des lettres, leurs formes, la figure qu’elles donnent à un mot, dessinent exactement, suivant le caractère de chaque peuple, des êtres inconnus dont le souvenir est en nous.

Honoré de Balzac, Louis Lambert

E MANIBVS REVERENDISSIMI MAGISTRI








sexta-feira, 26 de outubro de 2012

On being in love




What noble deeds were we not ripe for in the days when we loved? What noble lives could we not have lived for her sake? Our love was a religion we could have died for. It was no mere human creature like ourselves that we adored. It was a queen that we paid homage to, a goddess that we worshiped.
And how madly we did worship! And how sweet it was to worship! Ah, lad, cherish love‘s young dream while it lasts! You will know too soon how truly little Tom Moore sang when he said that there was nothing half so sweet in life. Even when it brings misery it is a wild, romantic misery, all unlike the dull, worldly pain of after‐sorrows. When you have lost her—when the light is gone out from your life and the world stretches before you a long, dark horror, even then a half‐enchantment mingles with your despair.
And who would not risk its terrors to gain its raptures? Ah, what raptures they were! The mere recollection thrills you. How delicious it was to tell her that you loved her, that you lived for her, that you would die for her! How you did rave, to be sure, what floods of extravagant nonsense you poured forth, and oh, how cruel it was of her to pretend not to believe you! In what awe you stood of her! How miserable you were when you had offended her! And yet, how pleasant to be bullied by her and to sue for pardon without having the slightest notion of what your fault was! How dark the world was when she snubbed you, as she often did, the little rogue, just to see you look wretched; how sunny when she smiled! How jealous you were of every one about her!


Jerome K. Jerome, The Idle Thoughts of an Idle Fellow

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

 
 
No passeio estrelado da calçada, olhámo-nos uma última vez, e depois entrei no meu prédio. Passei tranquilo a porta, o elevador estava ocupado; mas ao subir as escadas, tropecei nos atacadores que esquecera de apertar na devida altura. Tombei, caí, magoei-me. Entretanto o elevador já estava desocupado, mas eu estava entre andares, não pude entrar; e quando depois pude estava outra vez ocupado. Sempre as escadas, agora sem problemas nos atacadores mas ainda a dor da queda - e das outras quedas, pelas pessoas que, ao virem na minha direcção, não tinham a decência de se afastarem; ou talvez quem tivesse que se afastar fosse eu... A minha casa estava perto, mas o elevador sempre ocupado não me deixava acelerar o meu percurso: e por isso, a uma dada altura, parei cansado. Não apenas a dor do corpo, mas também já alguma fadiga emocional a tentar-me com o ficar ali mesmo, num canto de escadas, a cabeça no vão, e quedar-me. Alguém nesse momento saiu do elevador no andar abaixo de onde eu estava, subiu as escadas até mim pegou-me por baixo dos ombros e quase me obrigou a andar. Voltei ao meu caminho. Pus a cabeça no vazio que a espiral das escadas fazia existir, vi que o meu andar estava a curta distância; e, impondo ao corpo um último fôlego, decidi-me a chegar lá sem paragens. Cheguei. Cansado, as mãos sem o discernimento para escolherem a chave, mas depois a conseguirem, rodei a fechadura e, sem me preocupar com a porta aberta, ou em olhar para mais nada, fui de imediato à janela do quarto, que dava para a do teu. Puxei as cortinas, corri impetuoso as portadas - mas não te vi. Colado ao vidro, rodava o olhar em todas as direcções do teu prédio, e tu não estavas lá. Nenhuma janela aberta para mim. Fiquei à espera que aparecesses, talvez algo te tivesse atrasado como aconteceu comigo, mas o atraso foi ficando cada vez maior. A decepção fez-me desistir de ficar à espera de te ver. Afastei-me da janela, as mãos pendentes como dois enforcados, e então te vi: deitada sobre a cama, desde há tanto tempo esperando que me voltasse.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012



Entendo que o grande numero de livros se fez, e se inventou para confusão, porque vejo que houve mayores homens, quando havia menor numero de livros. Antigamente tudo era estudo proprio, porque trabalhava o entendimento, sem mais soccorros, que a sua especulaçaõ; hoje cança o entendimento, e falta o tempo, para ver Tratados das mesmas materias. Antigamente cada hum escrevia conforme o havia imaginado; hoje accomoda-se a imaginaçaõ ao discurso alheyo. Naõ nego, nem posso negar a incrivel fecundidade, de que tem sido causa o artificio nunca bastantemente louvado da impressaõ, pois por ella se communicou a todos, o que era só para alguns, e vio o Mundo em infinitas copias, o que reservava a curiosidade como precioso thesouro; mas tambem he certo, que depois da sua rara invençaõ he mais o que se treslada, do que o que se compoem. Da-se ao velho nova forma, da-se metodo ao que o naõ tinha, que naõ he pequeno beneficio; mas a substancia he a mesma, porque a differença só consiste nos accidentes, do que pudera fazer huma nobilissima inducçaõ, se me dera tanta licença huma Censura.

D. José Barbosa, in António Cerqueira Pinto, Historia da prodigiosa imagem do Christo Crucificado (1737)

domingo, 29 de julho de 2012

A verdadeira beleza



Emília era uma mulher de feições quasi vulgares, magra, testa alta, rosto oval com as faces ligeiramente angulosas, a bocca grande, os labios delgados, o nariz secco e pronunciado; mas uma mobilidade d'olhar, de gestos e de sorrisos, desprendidos entre um collar de dentes sem mancha, que enfeitiçava. Com excepção dos olhos que eram soberbos de doçura e languidez, nem uma só feição que merecesse a arte atteniense; ainda assim, um poder d'attracção enebriante.

Jaime de Magalhães Lima, Transviado (1899), pp. 11

segunda-feira, 16 de julho de 2012



Ela sorri. Diante dela, a ria imóvel e tranquila, a espelhar a luz crescente das nuvens que desvanece a névoa. Sorri para a ria como se esse troço de água fosse uma velha confidente, de experiência ganha pelos séculos de gente que à beira dela viveram e morreram, e à beira dela sorriram. O dia clareia, algumas nuvens permitem um pouco de azul e uns fios de luz ininterruptos até ás rugas que ondulam no rosto da velha, realçando uma forma de sorriso em resposta à garota que está sentada no pequeno mural de pedra branca. Sentindo as boas vibrações que atravessam a água, umas gaivotas pousam próximas, lançando-se, num movimento surpreso, em vôos sem direcção definida para voltarem quase ao ponto de partida. A ria percebe-a, sabe o que ela lhe quer contar. Nem teria que dizer nada: noutro ponto da cidade, tendo como fundo o cenário postal da fábrica Campos, a mesma ria testemunhou aquilo que ela lembra agora repetidas vezes. Era então a luz ténue não a de um novo dia, mas o cessar de todos os dias anteriores; diante dela (e a ria muda e calada, a passar despercebida para não manchar o ambiente), os olhos húmidos e profundos do seu grande amor, as mãos de ambos a envolverem-se na partilha dos sentimentos, os corpos próximos na intimidade invisível mas tão real, e o hotel ali mesmo ao lado... Não podia a ria adiantar-lhe já, nessa manhã, que ela afinal não significaria mais que essa noite?

All Together Now


Por muito que queiram apressar-se em realçar a originalidade e o nacionalismo do que é nosso, a verdade é que a comicidade que este anúncio pretende é precisamente onde temos errado estes séculos todos. A ideia da "aldeia global", que permite que os Beatles cheguem finalmente, em pleno século XXI, às terras que isolámos (sim, nós, os imitadores da cultura que a América, via Europa, nos impõe), devia envergonhar-nos por poder-se até pensar que conseguiu fazer o que nós nunca conseguimos: ligar o interior "desquecido e ostracizado" (como diria o Herman) ao mundo que vive em constante actualização. O que se elogia neste anúncio só haveria verdadeiramente se, por exemplo, pusessem "parolos" do litoral informatizado a imitarem a vida do campo do interior; talvez até lhes ensinasse alguma coisa...

quinta-feira, 28 de junho de 2012



Não quero ser igual aos outros porque não sou igual aos outros. Não tenho tendência para as mesmas atitudes, para as mesmas conversas, para a mesma forma de ver o mundo. Como se em cada objecto que esteja em cima da mesa eu visse, abstractamente, todos os seus componentes, depois os seus átomos, depois o fluido universal, tudo em movimento no corpo inerte. Como se em cada palavra eu visse todas as linhas das letras, os vazios abissais dos seus espaços, e cada bocado de tinta, com que o ar se vai colorindo enquanto caminha para fora do corpo moldado em palavras, tivesse em si todos os arco-íris mesclados de todas as filosofias. Como se cada acção fosse o jogo inconcluível de uma luta titânica entre as forças de todo o universo, trazidas desde os começos do tempo e lançadas, a partir dos confrontos do presente, até ao futuro incerto. Como se a vida toda que levamos fosse (e é) a sentença que a nós mesmos imputámos antes de nos entrosarmos com o animal a que chamamos de nosso corpo, e portanto cada coisa mínima, cada coisa de grande impacto, cada detalhe de um grande quadro, e o próprio quadro, tudo tem tanta importância como tudo o resto, porque tudo importa, tudo tem atrás de si a revelação de séculos da história de cada um de nós que vieram desembocar, por nossa causa, naquilo que acontece agora, bom ou mau; e a nossa atitude perante o que há de nós, em nós, e para nós irá para quando o futuro não o for mais. Na minha mente, por isso, está sempre tudo, e seria pelo menos natural que, à chegada de novas informações, as anteriores desaparecessem; mas as que se apeiam no terminal da minha alma acumulam-se à grande multidão que já lá está, envolvem-se agressivamente uns com os outros, degladeiam-se por um bocado de espaço e desordenam tudo. Há os que, ainda dentro dos comboios em que chegam depois de partirem da terra real, vêem que vão para um sitio caótico, carregadíssimo, que serão certamente esmagados por tanta gente; e por isso assim que saem, em vez de irem para o chão, lançam-se sobre os outros, como quem se atira para um colchão, derruba alguns, magoa outros, mas é também depois violentado, por retaliação, pelos que foram afectados por ele. O pequeno espaço acima dos meus olhos e entre as minhas orelhas é uma cornucópia não do leite e do mel com que o deus se fez homem, mas de todo o mundo num rodopio. Um mundo que sobrevive porque é abençoado pela luz brilhante do melhor sol que existe, um sol alimentado pelos teus olhos. Mas às vezes o céu está mais nublado, depois chove, há vento, há inverno. Bom mesmo é o verão, o sol está mais perto, por vezes excessivamente perto, o seu calor percorre-nos e agita-nos, o sangue atravessa desabridamente o corpo frágil, e nada acontece como deveria. E depois começa tudo de novo: e é mais uma pequena gota a engrossar o vastíssimo oceano com que vai cheio o cálice da minha mente.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Vaseco



Estive contigo. Percorremos juntos as calçadas líticas das muralhas, enviesámos nas ruas íngremes, estreitas e iluminadas. Próximo de ti, tentando guardar o teu sotaque e os olhos sem o brilho da malícia. O sorriso encantador e os dentes bem dispostos. Pelas vias da velha cidade, tu a caminhar, na distância simpática da formalidade amistosa, comigo. Mais gente, mas apenas tu, e eu a ver-te. Próximo de ti, cheguei a tocar-te, a olhar-te nos olhos, a sentir a blandura do rosto meigo num cumprimento automático; abriste-me a intimidade do teu quarto, a cama onde dormes, a janela por onde o sol te renova os dias, o espelho do roupeiro que partilha contigo o que é só para ti. Na tua casa na cidade - e no entanto tu eras apenas a ideia fixa de um apartamento num prédio próximo do Instituto, na periferia nova. Tu, à procura de um carro aí estacionado, ou de alguma luz nessas janelas. Tu a falares o ódio que brota da mágoa de um amor desfeito - um sentimento que conheço tão bem... Tu, imóvel numa prisão que não te deixa continuar a viver, que te esvazia lentamente a beleza num desperdício solitário. Tu a pensares nele, a falares dele, a quereres vê-lo e estar com ele - ele, quatro anos à tua frente, numa vida sem ti. E eu atrasado onze anos.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

JL 1082


Lembro-me de uma das primeiras vezes: a mãe a corrigir uma coisa que eu tinha dito mal, e eu a revoltar-me porque queria dizer o que estava a pensar, e a boca ainda demasiado infantil para te caber. Mas já aí, desde aí, desde sempre a tua presença em mim. E desde sempre isto. Isto, a tua cacofonia eufónica, com que as letras duras das tuas palavras reproduzem o lirismo dos nossos cérebros adoentados pelo calor do sol que, mesmo nos dias de chuva e no pico da noite, define a estranheza da nossa visão do mundo. Isto, a emoção impossível da tua música. Isto, o prazer de te escrever. Só nós, os que recebeste na intimidade da tua casa, sabemos o valor imenso da tua riqueza; só nós sabemos porque te amamos, e nunca alguém que tenha casado o seu passado com outro falar poderá ter a noção de tudo o que és. Pode visitar-te, viver contigo para sempre, mas só nós, que trabalhámos o espaço agreste da Razão com as tuas ferramentas subversivas, te conhecemos quase tão bem como tu a nós. Tu, filha da língua dos Romanos, nascida da sua união com as cores selvagens dos cereais fecundos e da magia terna do mar quase insular, és a pátria que Pessoa identificou para todos nós, mas és também a nossa terra, a nossa origem; o corpo provém do corpo, a alma cresce contigo.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Ex imis



Sentado sobre o húmido, lamacento, revolvido pela guerra, escuro solo que banham as tépidas águas da costa da Tróade; sob um céu escuro, carregado, mas vazio, vejo um par se aproximando de mim. Apenas a minha tenda, a que me encosto, me impede de tombar pelo meu desespero e desejar ali logo a chegada do momento breve. Vêm não porque querem, esses dois arautos fiéis. Farão o que não querem, esses homens devotos. Cumprirão o que não desejam, esses homens límpidos. Aqui dentro, feliz, vive Briseida a sua vida na minha. Nunca me desejou antes do saque; nunca pensara, sequer, que eu pudesse existir. Admiro a sua lealdade para comigo. Foi forçada sem contestação, sem se ouvir a sua palavra, a me pertencer, mas conseguiu ser feliz assim. Passam diante de meus pés os grandes momentos em que ela, silenciosa, terna, autêntica Afrodite antrópica, delicadamente deslizando, chega a meu leito; os grandes nadas de que é feito o dia-a-dia, durante os quais olhares se tocam, ombros se sentem, palavras se ouvem. Sobretudo, a primeira noite após a nossa vinda de Tebas. A sua magia, que dizem morrer numa mulher logo que tomada por um homem, que me parecia impossível existir em corpo mortal com tal intensidade, e que estava maior ainda quando a Aurora lhe clareou a face. Mas são soprados para longe esses pensamentos pela figura dupla que advém. Não sabe ela, ainda, que está prestes uma mudança terrível na sua vida. Ainda, zelosa, me cobre o leito de pétalas de rosa... Com olhar apavorado, pergunta-me, silenciosa, que se passa. Nada posso fazer senão vê-la partir. Não consigo, nem devo enfrentar aquele que é mais que eu. Minha Briseida vai de mim. A cumplicidade entre nós, quase de soberana para servo, desmorona-se ao lado do meu coração, e da minha honra. Inerte, vejo aquela que faz parte da minha casa ser-me levada a braços até aquele que me enfrentou publicamente e provou a todos que também sobre mim ele dita seus quereres. Mas a raiva que aqui tenho, aqui onde outrora foi coração, a bílis que se me alastra por todo o ser, não me deixam conformado. Não mereço. Sei que fiz Briseida feliz. Sei que não pus em risco o estatuto daquele que empunha o ceptro. Apetece-me ficar longe, sozinho.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

segunda-feira, 26 de março de 2012

Senhor dos Passos, Aveiro (25-03-2012)



A perversão de todos os valores cristãos, bem diante da anuência ignorante e apática dos fiéis: a sigla SPQR...

sexta-feira, 23 de março de 2012



Agora vai, com o passo trémulo e apressado, os olhos postos no caminho sem o verem, as mãos nos bolsos do casaco. Passa pelas ruas e pelas pessoas mas, para si, caminha sozinho no contorno dos obstáculos. Vai, consigo e com os seus, numa conversa só entre eles que, por vezes, escapa na boca, como se o corpo quisesse também fazer parte do grupo. Afinal, é lá que se encontram...

Noctúrnia





Não sei quanto ainda falta, nem a sinto sair, apenas vejo que sai, e enquanto vai saindo, com a cabeça tombada na parede. No fim, abotoo as calças e saio da casa de banho, vou procurando não tombar muito e não chocar muito com os outros, olho em volta e encontro as pessoas com quem estou. Não ouço nada, a música estridente não me deixa ouvir nada, junto-me a eles e volto a dançar. Dançar: mexer o corpo consoante o dita a música, agitar a cabeça, o tronco, as pernas, os ombros ao ritmo das batidas, e quando parece que cospe num ritmo mais acentuado - aguardar pelo retomar das batidas regulares, como numa apoteose delirante. Não sei quanto bebi, sei que já saiu tudo menos o álcool que entope os ouvidos, amolece o corpo e mexe as minhas mãos e a voz, porque me vejo a fazer e a dizer o que, sóbrio, seria impossível. O sóbrio parece que, longe, trancado no ínfimo da consciência, vai assistindo ao que se passa, como se outrem tomasse agora conta do corpo e dançasse com esta realidade tudo o que gostaria de ter feito com a sua própria. Está tudo distante, é uma pena que logo hoje, que eu estou assim, esteja perto de ti; é pena que julgues que eu sou assim, porque só hoje eu sou assim. Hoje, que te conheci. Hoje, que vejo que és muito boa de carácter e lindíssima de corpo. Sóbrio, não deixaria as minhas mãos tocarem, acidentalmente, as tuas; não falaria contigo por entre os fios dos teus cabelos; sóbrio, implodiria tudo o que, em tão pouco tempo e em circunstâncias tão anómalas, sinto por ti. Mas sóbrio, tenho a certeza que te iria achar tão bonita como agora, no meio de tanta gente e de tanto ruído. Sei que vais ser sempre alguém diferente. Se te voltar a ver. Gostei muito de te descobrir, de saber que existes. Aparece mais vezes na minha vida; ou, se não tiveres de aparecer mais vezes, que te apareça na tua vida alguém que te veja o que eu gostava de te ver.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

   
   
    [...] I have too long
Loved pretty women with a poet's feeling.
    And when a boy, in day dream and in song,
Have knelt me down and worshipp'd them: alas!
They never thank'd me for't - but let that pass.

Fitz-Greene Halleck, Fanny (1819), pp. 5

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012



É quase noite, mas ainda tenho tempo de ir à biblioteca, quero sempre lá ir, por muito tarde que seja. Passo o corredor, subo as escadas, a porta ao lado da grande sala de banquetes é a da biblioteca. Um espaço quase sempre fechado, da altura de dois andares, imenso como uma avenida, as paredes transformadas em estantes sem um único espaço livre; multicolores pelas lombadas, possantes pela espessura dos volumes. Agora, não me importo se chega a noite e tenho de ficar aqui mais tempo do que devo. Dirijo o escadote rolante até ao primeiro canto, e vou percorrendo, com agrado, as listas dos títulos, dos autores, às vezes misturando palavras e inventando obras que a fusão de dois génios inigualáveis pudesse concretizar. A Divina Antígona; O Corvo de Abrantes; Ralph Waldo Heidegger; Marco Túlio de Assis; Sócrates, o rei sol; Padre António Garrett. Da impossibilidade inicial, da quase recusa automática pela estranheza da associação de alguns, acorre logo toda a potencialidade hipotética dessa eventual realidade, e começo, em ideias soltas, a unir versos distantes, a completar frases de um mundo com palavras de outro universo, vejo a Virgínia Wolf a impedir o suicídio da Florbela para lhe antecipar o seu; o Almada a por as mãos á cabeça para não as por no pescoço do Dantas; o Reis chocado com o humor sarcástico do Campos; o Marquês a passear com o Inigo em Loiola. Mas interrompo subitamente estes pensamentos quando dou conta do patrão a olhar-me para baixo da saia e a perguntar quanto tempo demoro para limpar o pó dos livros.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

terça-feira, 31 de janeiro de 2012



A casa não tinha portas. Passávamos pelas divisões através do que deveria ser o lugar de uma porta, até o chão mudava, mas nada fechava um lado do outro. Só em lugares que pedissem alguma privacidade se corria uns reposteiros toscos, pesados e velhos. A casa já era assim desde os tempos da aldeia, quando era pouca gente e todos se conheciam; depois que a vila se tornara cidade, parecia perigoso persistir nessa tradição. Eu gostava de correr pelos corredores infinitos que levavam da cozinha à sala, ambas nos extremos da casa. Ninguém me impedia, porque afinal não havia perigo de me aleijar nas esquinas dos móveis que eram quase nenhuns. Só um quadro ou uma pequena estante cortavam por breves momentos a nudez das paredes. E eu corria sempre, sem saber o que me levava a não ficar quieto, nem à hora da refeição, com a mesa cheia de narizes a bicar na sopa; eu tinha que me mexer. Os meus pais, sempre tão correctos e disciplinadores, tornavam-se, quando visitávamos os tios da minha mãe, indiferentes a tudo o que eu fizesse. À excepção de quando, num almoço, perguntei em que fechadura se usava uma chave que encontrei perdida no sótão.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

 
 
Até que chegou o dia e foi internada. Fui com ela à maternidade, Flora entrou por ali dentro como rainha. Escolheu o quarto com certa dificuldade de escolha. Porque havia o ruído da rua e as traseiras dos prédios com os canos saídos como varizes. E os do meio eram mais lúgubres. Ficou num que tinha sol e um pouco de tráfego para ouvir. Eu ia lá todos os dias mas ela não aprovava:
- Venha só no dia próprio - disse-me.
O dia chegou, eu fui. Estive lá até à noite e havia o jornal da minha obrigação. O pai de Flora era o meu director, era viúvo, apareceu também, mas tudo afinal estava ainda atrasado. O pai de Flora saiu, eu fiquei ainda, até que saí também. Ia despedir-me e dar-lhe um beijo mais íntimo. Flora disse-me:
- Seja casto.

Vergílio Ferreira, Até ao fim

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012



A criança vai enumerando todas as coisas que passam por si do outro lado do vidro do carro. Pessoas, árvores, as cores de uns, o tamanho de outros, as formas, as quantidades. Há sempre qualquer coisa nova que marca toda a atenção inocente da sua infância. De vez em quando pergunta à mãe se também viu, ou qual o nome do que não conhece, ou porque é que aquela senhora é assim, ou aquele cão tem o pêlo curtinho, o carro amarelo, a ambulância a fazer barulho ao longe ou o semáforo a brincar com as cores. A mãe dá respostas curtas, quase mudas, querendo que o filho se cale, como ela e o marido estão a fazer. Já sabe que vai ser um dia mau, porque vão à reunião anual da família dele. É-lhe difícil estar com aquela gente, o sogro com olhares perversos, a não disfarçar o que lhe vai na imaginação; a sogra a acusá-la de ser o que o velho está a pensar. A cunhada a dar exemplos hipócritas de mulher ideal para criar um lar, cuidar da casa e dos filhos, tudo na perfeição e com eterna alegria - pedaço de cristal puro e fino que, passado pouco tempo, não resiste ao uso intensivo a que não está habituado e acaba por se quebrar, vertendo o líquido fétido que guardava. É-lhe difícil ver os sobrinhos a maltratarem o seu pequenino, mas se diz alguma coisa: são brincadeiras de criança, é sem maldade. Incomoda-a o cunhado, a passar-lhe as mãos abaixo da cintura, a dizer indecências, disfarçadas com risos ruidosos de um humor de fraco gosto. É-lhe também insuportável o marido a acusá-la de não se esforçar para se dar bem com a família - mas qual família?

sábado, 7 de janeiro de 2012

Futur proche



Cheguei a casa. Na sala, ocupando o sofá, o teu corpo estendido na brandura de um sono calmo. O rosto virado para o ombro direito, com os cabelos soltos para trás do pescoço. As linhas agressivas do nariz a desaguarem na boca desprotegida. Os braços, lançados para distâncias próximas, levantam a camisola do pijama que, ondeada pelos ossos do ventre, insinua a planura delicada que ladeia o vulcão do umbigo. O peito, revelado por três botões abertos, move-se na mecânica serena do ar que te renova o corpo, e o volume sóbrio dos seios arranca a descida vertiginosa pela cintura apertada. Antes do elástico das calças, a cor fogosa da peça interior estica-se pouco acima das tuas cores íntimas, e as pernas, após a breve curva dos joelhos, expandem-se no assombro da linearidade vítrea dos pés frágeis. Deixo a mala no chão, o casaco em cima dela; descalço um pé com o outro e alivio as calças. Junto-me a ti; estou em casa.