terça-feira, 31 de janeiro de 2012



A casa não tinha portas. Passávamos pelas divisões através do que deveria ser o lugar de uma porta, até o chão mudava, mas nada fechava um lado do outro. Só em lugares que pedissem alguma privacidade se corria uns reposteiros toscos, pesados e velhos. A casa já era assim desde os tempos da aldeia, quando era pouca gente e todos se conheciam; depois que a vila se tornara cidade, parecia perigoso persistir nessa tradição. Eu gostava de correr pelos corredores infinitos que levavam da cozinha à sala, ambas nos extremos da casa. Ninguém me impedia, porque afinal não havia perigo de me aleijar nas esquinas dos móveis que eram quase nenhuns. Só um quadro ou uma pequena estante cortavam por breves momentos a nudez das paredes. E eu corria sempre, sem saber o que me levava a não ficar quieto, nem à hora da refeição, com a mesa cheia de narizes a bicar na sopa; eu tinha que me mexer. Os meus pais, sempre tão correctos e disciplinadores, tornavam-se, quando visitávamos os tios da minha mãe, indiferentes a tudo o que eu fizesse. À excepção de quando, num almoço, perguntei em que fechadura se usava uma chave que encontrei perdida no sótão.

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