segunda-feira, 9 de janeiro de 2012



A criança vai enumerando todas as coisas que passam por si do outro lado do vidro do carro. Pessoas, árvores, as cores de uns, o tamanho de outros, as formas, as quantidades. Há sempre qualquer coisa nova que marca toda a atenção inocente da sua infância. De vez em quando pergunta à mãe se também viu, ou qual o nome do que não conhece, ou porque é que aquela senhora é assim, ou aquele cão tem o pêlo curtinho, o carro amarelo, a ambulância a fazer barulho ao longe ou o semáforo a brincar com as cores. A mãe dá respostas curtas, quase mudas, querendo que o filho se cale, como ela e o marido estão a fazer. Já sabe que vai ser um dia mau, porque vão à reunião anual da família dele. É-lhe difícil estar com aquela gente, o sogro com olhares perversos, a não disfarçar o que lhe vai na imaginação; a sogra a acusá-la de ser o que o velho está a pensar. A cunhada a dar exemplos hipócritas de mulher ideal para criar um lar, cuidar da casa e dos filhos, tudo na perfeição e com eterna alegria - pedaço de cristal puro e fino que, passado pouco tempo, não resiste ao uso intensivo a que não está habituado e acaba por se quebrar, vertendo o líquido fétido que guardava. É-lhe difícil ver os sobrinhos a maltratarem o seu pequenino, mas se diz alguma coisa: são brincadeiras de criança, é sem maldade. Incomoda-a o cunhado, a passar-lhe as mãos abaixo da cintura, a dizer indecências, disfarçadas com risos ruidosos de um humor de fraco gosto. É-lhe também insuportável o marido a acusá-la de não se esforçar para se dar bem com a família - mas qual família?

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