segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

  
  
Que alegria há em estar sozinho? Mas estragar por isso a vida de outra pessoa?

sábado, 24 de dezembro de 2011

Esboço

 
 
Feliz Natal.
Esta prenda é muito simples
Mas dou-ta com o melhor dos meus sentimentos.
És muito linda.
Gostava de passar mais tempo contigo
Para que a nossa amizade se torne
Mais forte.
O brilho dos teus olhos diz-me
Que no espaço da tua alma
Há um pequeno lugar que guardas imune
À contaminação sulfúrica das outras pessoas.
Quero ajudar-te a defender
Esse pedaço de paraíso
Que guardas como um tesouro
E quero também mostrar-te
As ruínas de um lugar semelhante
Que já existiu em mim
Mas que foi destruído
Porque ninguém o protegeu
Como eu quero proteger o teu.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011



Ninguém a ouve. As pessoas passam rápidas por ela, fechadas nas suas vidas, não olham para ela mas sabem que ela está ali porque se afastam para não chocarem com ela. É como se a voz dela, elevada à rouquidão de um grito que lhe magoa o peito, fosse apenas imaginação dela, porque todos passam como se não houvesse qualquer ruído. Ela chama-os, um a um, suplica por ajuda, apela a um gesto humanitário - mas ninguém lhe atende. O que se torna da humanidade quando ninguém se sensibiliza com uma pessoa que sofre? Às vezes agarra a manga de alguém, que a enxota como a um estorvo, também se põe no caminho e procura impedir os passos de outra pessoa, que, confrontada diante dela, dá uma volta maior no passeio para a contornar. A todos pergunta pelo seu filho que desapareceu. Pergunta se o viram, se sabem onde ele está, se pelo menos ele está vivo, se já casou, como são os netinhos, mas o filho que não volta, que não a visita, se alguém a pode ajudar: e ninguém a acompanha na sua dor. Como se não soubessem o que é perder o contacto com um filho - certamente alguma dessas velhas que fecham a cara quando a vêem sabe o que ela sente. Mas não partilham com ela, ficam revoltadas, dentro dos seus cantinhos, por ela expor aquilo que elas lutam por esquecer. Mas ela não esquece. Ela não quer pensar no seu filho como sendo uma memória do passado, o seu menino querido, a luz da sua vida, a razão de ela ter nascido para todo este sofrimento. Ela tem de o encontrar, algures a vida os conduzirá um ao outro, para que ela possa dar-lhe todo o amor que não deu. Talvez um dia, mas não nesta vida: porque essa mulher não teve filhos.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011



Dou por mim a rir-me, com os outros, de mim. A acompanhá-los no escárnio que os leva a tratarem-me como a um animal sem importância, rafeiro sujo e descuidado a viver das sobras dos contentores do lixo. Arranhado e com falhas de pêlo, manco de uma pata e olhar encovado. A rir-me com eles de tudo o que sou. Há momentos em que não me rio, que é quando me batem pontapés nas nádegas, palmadas na nuca, joelhadas nas coxas - aí não me rio, porque me dói, mas é quando eles se riem mais, e eu acelero o meu riso para me aproximar do deles e acompanhá-los. Preciso de estar ao lado deles, e de ser vexado assim. Mas porquê? Porque é que não consigo encher-me dessa força que eles esbanjam, e fazer-me igual a eles, porque é que não sinto o respeito que lhes dou sem pensar em mim? Depois de algumas bofetadas vão-se embora, e eu fico no meu lugar, o rodapé da barbearia. Sento-me no chão, que não é meu, eu é que sou dele, eu sou como o papel amarrotado que deixam cair com raiva depois de irem ao multibanco, sou a beata escurecida pelo fumo e pelos pés que sobre ela passam. Sou como a mancha azeda que o cão da viúva deixou a escorrer da árvore. A erva espalmada pela bola com que a criança brinca. O vazio deixado nas folhas pelas larvas. O risco preto de sujidade nas frinchas da janela. Os restos que vão ficando suspensos na sarjeta da berma da estrada. Sou a sombra dos bocados de pele escondidos pelas rugas de sofrimento que os velhos arrastam nos passos doridos. A mente apagada dos drogados que indicam o estacionamento. A decadência do bêbedo que contorna, bambo, o caminho para o balcão. Uma faca que se descobre junto ao cinto, numa rua deserta, diante de um rosto assustado. Um marido a gritar com as mãos à sua mulher. Um carro cujo dono ficou a pé a ver dois estranhos fugirem com ele. De tudo o que há à minha volta, só vejo a miséria, porque miséria é a minha vida, é o que tenho aprendido desde que me conheço. Miséria inútil, feita inútil pelos outros - os mesmos, talvez, a quem eu terei feito o mesmo noutra hora. Mas nessa hora, terá havido algum minuto de sol? Terá havido algum segundo de felicidade que possa bastar a que, de entre tudo o que sou, me ames?

domingo, 27 de novembro de 2011



Consegues ainda fechar a porta do quarto antes de eu lá chegar. Rodas rápida a chave, e continuas a gritar, agora do lado de dentro, para eu desaparecer de vez da tua vida. Esta nossa discussão não começou agora, pela razão insignificante que te fez levantar da mesa; já andamos assim há muito tempo, desde que vivemos os dois. A nossa vida tem sido um desentendimento constante, adormecido por vezes mas elevado à sua plenitude em ocasiões como esta, agora. Ouço o estilhaço do espelho da cómoda, a queda das gavetas no chão, os frascos de perfume na parede, tecidos a serem rasgados (da cama?, do roupeiro?), ao compasso da fúria que te arranha a garganta e se transforma num grunhido raivoso de destruição. Tento ainda abrir a porta, forçá-la para rebentar a fechadura, mas não consigo, se calhar também não quero; acho que já não quero nada disto. Mas agora é tarde para voltar a ser o que era antes de ti. Não me consigo conformar com a desarmonia que há entre nós, mas tenho de me resignar a estar contigo, não apenas por ti, mas por mim também. Soube bem ver um corpo como o teu arrebatado pelo meu prazer; soube bem mostrar-te, como prémio da minha vitória, aos outros caçadores; soube bem ter o exclusivo dos teus olhos. Tudo isso, porém, trazia uma contrapartida: para poder usufruir da tua beleza, tive de aceitar a instabilidade do teu humor. Ninguém é perfeito,  e se tu eras portadora de um corpo sem defeito, o defeito tinha de estar em algum lado... Com o tempo, a aparência efémera das belas formas foi decaindo, e com ela o teu feitio: ficaste ainda pior. Agora, sem a atracção que te possa dar ainda algum valor, vives ressentida e presa à velhice inexorável - a tua e a minha; porque aquilo que te garantia superioridade sobre todos os outros era também o que vias quando me olhavas; e o meu estado actual lembra-te cruamente que também tu estás assim. Mas agora não te posso deixar. O que seria de ti, e de mim? Se eu desistisse agora de tentar pôr esta parede abaixo, e saísse pela outra porta, a da rua, não haveria ninguém que te apoiasse como eu, tornavas-te objecto de desvios desumanos; e a solidão apressava ainda mais um fim que está próximo mas que buscarias por ti. E se te deixasse, eu viveria até ao meu fim a dor de ter abandonado a mulher que, nesta vida, fui permitido amar.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Nunca mais!



Tudo ainda seduz, convida aos gozos;
É perfumado o ar, macio o chão;
A selva juvenil, prados viçosos...
- Tudo reverdeceu! - minha alma não!...

Amelia Janny, in Panorama photographico de Portugal, vol. II (1872), pp. 104

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Cinco séculos



O mar devorou-nos. Parece que a rubra Cruz de Cristo, aberta nas bandeiras, consigo levava na verdade o sangue, a virtude e a fôrça das populações vivas que tinham aclamado o Mestre de Aviz. A nossa ruína foi porêm o preço do maior acto da civilização nos tempos modernos.

Luís de Almeida Braga, O mar tenebroso (1918), pp. 145

domingo, 30 de outubro de 2011

Consumismo


Um dos criterios que mais distinguem o que hoje se chama civilisação, é a multiplicidade e a vulgarisação das necessidades facticias, ou a transformação d'ellas em necessidades verdadeiras; e pode dizer-se que a civilisação moderna está na razão directa d'aquella multiplicidade e vulgarisação, ou d'aquella transformação; e por consequencia, que uma nação é tanto mais civilisada, quanto maior é o numero de taes necessidades, a que mais geralmente satisfaz.

 do Discurso preliminar pelo Ajudante de Ordens de António de Saldanha da Gama, Memoria sobre as colonias de Portugal (1839), pp. 11

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

História da Filosofia


145. Como é que tantos filósofos antigos e modernos discutiram, durante tanto tempo, sobre a ciência psicológica, sem terem chegado à verdade?

"Esses homens foram os precursores da eterna Doutrina Espírita; eles prepararam os caminhos. Eram homens, logo puderam enganar-se, porque tomaram as suas próprias ideias pela luz; porém, os seus próprios erros servem para fazer realçar a verdade, mostrando os prós e os contras. Aliás, entre estes erros encontram-se grandes verdades que um estudo comparativo vos faz compreender."

Allan Kardec, Livro dos Espíritos

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Geração



Os teus olhos brilham, como de todas as vezes que falavas nele. Reparo no teu corpo estremecendo ao lado do dele, e apenas dizes monossílabos esporádicos, queres escutar-lhe tudo o que puderes, olhá-lo o mais possível, estar junto dele para sempre. Compreendo-te bem, filha; também já amei assim. Fico muito contente por encontrares quem te faça sentir tão feliz, e não esteja contigo apenas para se servir um bocado de algumas partes de ti. Um pouco mais afastada, a tua mãe nota a minha distância, pergunta-me o que tenho; e, por me veres assim, a tristeza do teu olhar julga que eu não o aprovo. Filha, lembras-te das coisas que, ao jantar, costumas contar sobre ele?, sobre vocês?, sobre o que ele te diz e faz por ti? E qual é a minha reacção, lembras-te? Não, não tenho dúvidas de que, dentro da vacuidade moral que se espraia pelo mundo, ele não é como os outros: sem ter dado conta, conseguiu ultrapassar o meu enigma esfíngico sobre o que és para ele, com toda a sinceridade nos olhos estranhos (e não podia ser de outra forma...). Não, pequenina; não quero que sofras a desilusão desse amor que sentes tão grande. Tempos houve que passei por aí e não quero que percas todas as oportunidades de seres feliz; já basta o resto. Essa alegria que ilumina, em fogo de artifício, a noite das tuas dificuldades – era certamente assim que eu acordava quando amei como tu, nessa primeira vez, após tantas outras, em que descobri de novo o meu coração. Éramos tudo menos crianças, mas ao lado dela eu voltava à minha infância, ao tempo do lazer interminável e despreocupado. Ouvir-lhe a voz, cruzar-lhe o olhar, transbordar o meu pensamento com o seu rosto imaculado e divertido – era melhor que qualquer êxtase artificial e solitário. Todo o meu ser caía para ela; mesmo que eu reparasse nos riscos a que me expunha, o corpo, absorvido em desejo, não me ouvia e, contra as minhas ilusões de controlo, vivia apenas para estar com ela, para ser um só com ela. Mas tive de perceber que estava a olhar para o outro lado de um fosso intransponível; e a verdadeira dor apareceu quando o fosso nos afastou ainda mais, porque dentro do ventre dela algo de muito belo acontecia. Filha querida, tive então de suportar uma longa travessia no deserto, onde havia abundância mas que, ao toque das minhas mãos sedentas, tudo se tornava areia áspera e dolorosa. Fui, por fim, abençoado com o amor da tua mãe, e com a tua presença entre nós; o que sofri não o desejo a ninguém, muito menos a vocês duas, que tanto amo acima de tudo o que existe. Não, filha, não foi por causa do rapaz que me levantei e vim até à janela; foi por tê-lo ouvido dizer o nome da mãe dele.

domingo, 21 de agosto de 2011

A Poesia do Soffrimento


Minha alma robusteceu-se nas lides do pensamento; tornou-se de marmore; e agora, vigorosa e forte, não ha paixões que lhe imprimam um vestigio, espinhos que lhe façam verter uma gotta de sangue...

Guilhermino Augusto, in O Instituto (1822), pp.  23

sábado, 20 de agosto de 2011

Poesia Dramatica


Mas a arte dramatica achava-se ja muito decahida do seu primitivo explendor, quando Antiocho Epiphanes introduziu na Grecia os jogos dos gladiadores, que faziam ha longos tempos as delícias dos Romanos. Desde esse momento o povo atheniense affez-se áquellas scenas de matança, regosijou-se com os ais dos moribundos, com o sangue que tingia o circo, e a poesia dramatica morreu para sempre na Grecia.

Alexandre Braga, in O Instituto (1852), pp. 29

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Tibet



A Soledade


De quanto cobre o sol nada appeteço,
Ao mundo inteiro cousa alguma peço.

Lamartine, 1ª Meditação Poética, in O Instituto (1852) (trad. de F.)

terça-feira, 16 de agosto de 2011



Sentado na bicicleta, os dois pés no chão, o rapaz conversa a ternura de palavras doces para a rapariga imobilizada pela emoção de o ouvir. Estão no portão do pequeno muro que delimita a casa que os pais dela construíram na terra herdada pelos avós; falam os dois, baixinho, quase escondidos pelas árvores pequenas que, do lado de dentro, acompanham o muro. A pele escurecida de ambos atrai-os um ao outro, o brilho dos olhos dela, a inocência do seu cabelo solto sobre os ombros e a ligeireza das suas roupas; ele, de calções caídos na cintura até ao joelho, o cabelo picado de gel, e a camisola preta de cavas que realça e melhora o corpo do seu trabalho na empresa de pequenas construções do pai. Nada mais acontece naquele momento senão as palavras que pouco importam diante dos sentimentos que se trocam; nem os vizinhos a disfarçarem mal que os estão a ver, nem os carros estupidamente excessivos dos emigrantes, nem o sol doentio do Verão. Importa-lhes apenas estarem juntos, todas essas preocupações só haveriam se o desejo não as superasse. Continuam a conversa da noite anterior, começada quase inesperadamente por entre a multidão que dançava e acompanhava a banda regional nos festejos da padroeira local. Embora vivessem perto um do outro, nunca houvera um impulso para estarem juntos; e nessa noite, enquanto as famílias de ambos se divertiam na reunião dos parentes que vieram do estrangeiro, e se copiavam grosseiramente êxitos musicais de outras décadas, eles encontraram-se a meio caminho entre o balcão das bebidas e o carro das pipocas: e um despertar ígneo se apossou do peito dele, do estômago dela, que os obriga a estarem juntos hoje. A paixão que os atrai durará os primeiros anos da sua relação; depois estarão juntos mais alguns anos por comodismo e habituação, até porque as suas famílias os obrigam; trair-se-ão mutuamente na busca de sensações novas; ela acabará por engravidar, e o casamento virá compulsivo. A filha deles, no portão da casa, estará, numa tarde quente de Agosto, a sorrir de prazer para um jovem a quem ela agrade.

domingo, 14 de agosto de 2011

O Poeta


Os hymnos tão suaves, tão cheios d'uncção, tão intimos, que os psalmistas das cathedraes de Hespanha repetiam com enthusiasmo, eram como o respirar tranquillo do somno da madrugada que vem depois do arquejar violento, do gemer doloroso de pesadello nocturno.

Alexandre Herculano, Eurico, o presbytero (1847), pp. 18

É um estado de convalescença. Há uma guerra dentro de mim, como se fosse a cura de uma doença, mas não daquelas de que os médicos se dizem especialistas. Esta doença não tem cura porque não é uma doença. Estou na sua convalescença, mas sei que voltará, sei que em breve estarei de novo sob o efeito da sua febre, com os delírios próprios desse estado doentio. Imaginar-me-ei igual aos outros, e julgarei que sou possível como alguém, iludir-me-ei com a fantasia de um futuro vulgar, ao lado de alguém que me ame com o amor com que as pessoas normalizadas se costumam amar. Mas depois tenho de tratar novamente dessa doença, amainá-la, reduzi-la para não se alastrar a níveis que ponham em risco o que de mim há ainda são. Sei que dentro de pouco tempo haverá outro rosto, que o parasita que habita em mim (e que sou eu próprio) acordará outra vez, e será necessário aplicar-lhe novo tratamento para a guardar até à vez seguinte. Estou em convalescença de ti.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Extasis



E é pois assim absorto, delirante,
Que eu vejo alguem, imagem vaporosa,
- Cabellos negros, faces côr de rosa -
Passar como uma sombra vacillante.

É pois assim, assim é que eu a vejo,
É assim que eu lhe quero e que eu a adoro;
E sei então que vivo porque choro
Beijando a sombra, que mais nada beijo!

João Maria de Santiago-Prezado, Primeiros versos (1902)

Um beijo



Estaria eu apaixonado por Miss Ellen? Mas Miss Ellen não tinha metade da minha idade, Miss Ellen era uma criança ainda! Procurei dominar-me, analizar-me, compreender-me, - e tive, então, pavor de mim mesmo. Não. Não havia dúvida. A velhice chegára, com o mais terrivel dos seus sintomas. O que me perturbava em Miss Ellen não era a beleza, era a mocidade; não era a mulher, era a criança. Eu tinha tantas vezes observado nos outros essa primeira manifestação de decadência, que não me foi difícil surpreendê-la em mim próprio. A predilecção amorosa pelas raparigas muito novas, essa «voluptuosidade da candura», que marca no homem o princípio da velhice, aparecera em mim, súbitamente, doentiamente, com o prometido beijo de Miss Ellen.

Júlio Dantas, Ao ouvido de Mme. X (1915)

A Fonte do Amor



Cheguei a velhinho, ainda lá bebia...
Outros chegavam p'ra beber;
E eu, sempre a beber também, dizia:
É mentira! é mentira! Esta agoa faz soffrer!


Afonso Lopes Vieira, Para quê? (1897)

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Ela era de uma beleza sem igual, marcada é certo por acontecimentos menos positivos da vida humana, mas ainda assim superior à de qualquer mulher que vivesse na sociedade mesquinha e preconceituosa, fingidamente progredida. Disse-me que até teria gostado de mim, se eu tivesse cuidado da minha aparência. Não: eu já tive cuidado com a minha aparência, e nessa altura as mulheres como ela não se interessavam por mim porque havia quem tivesse uma aparência melhor que a minha. A minha riqueza não está, nunca esteve na beleza transitória do corpo mortal: mas no caminho superior de que esta vida é apenas um passo. Perguntei-lhe que beleza era a dela. A do corpo? E quando o corpo já não for como é agora, com o que ela se irá identificar? De que se irá orgulhar, do passado? Ela olhou para mim num desdém de quem está acima de alguém banal como eu, e refugiou-se na cúpula da sua ilusão.

domingo, 10 de julho de 2011


"O decurso de trinta a quarenta annos, no turbilhão, cada vez mais rapido, em que hoje as idéas passam, modificando-se, transformando-se, é um periodo que corresponde a seculos nos tempos em que o progresso humano era sem comparação mais lento. As doutrinas, as apreciações criticas, os systemas, os livros quasi que envelhecem tão depressa como o homem. O pensamento que ha vinte annos parecia uma verdade nova póde hoje parecer apenas um problema não resolvido, e até um erro condemnado; a observação profunda de então ser hoje trivialidade; a critica subtil, que levou um raio de luz a certos recessos obscuros dos factos, achar-se incorporada e transfigurada em apreciação mais complexa que illumine dilatados horisontes."


Alexandre Herculano Opúsculos. Vol I (1873), pp.XIII-XIV

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Caminhando sem destino até chegarem ao destino que os espera, sempre os três: ele, acompanhado do seu filho, e o animal de estimação, o corpo.

domingo, 3 de julho de 2011

As coisas aconteceram todas. Algumas das que eu quis, algumas das que não quis, muitas das que nunca esperei. Aconteceu tudo; resta apenas que chegue a mão ossada que risque a última página e feche o livro (a última página é dela, porque a fui gastando ao longo das outras todas).
Falas comigo como se eu fosse o homem de vinte e tal anos que a barba cortada aparenta; mas dentro de mim há o ocaso de uma humanidade inteira que soçobra ante o nascimento de um novo mundo.

Achas que devo começar a gostar dela? Estavas na disposição de ser filho dela?

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Uma pessoa que conhecemos e que nos venha falar acerca de uma outra que não conhecemos: devemos acreditar acriticamente no que a primeira nos diz sobre a terceira? Usamos este exemplo a propósito de "O pensamento português contemporâneo. 1890-2010" de Miguel Real. O livro, tal como a sua primeira parte, a "Introdução à cultura portuguesa", só vale por, numa tendência pouco levada a sério na intelectualidade portuguesa, reunir nomes que de outro modo nunca apareceriam juntos; mas tudo o que intermedeie o cabeçalho que introduz um autor até ao do outro autor - é a opinião do autor do livro. A opinião do leitor deve ser feita, como defende Eudoro de Sousa (que Miguel Real conhece mas a quem não quer dar importância...), a partir da leitura directa dos originais. O autor de um livro explica-se a si mesmo no seu livro, e cada leitor explica-se na leitura que faz do livro. Porque um livro que não seja literário não deixa de ser arte.

Return

Inesperado, o fenómeno natural apareceu e arrasou o pouco que havia; tempos se passaram até que alguns curiosos voltassem àquela terra maldita e começassem a procurar pelo que ficara jazente sob a massa petrificada e adormecida de destruição. E os antigos edifícios, um pouco mais desfeitos do que estavam, voltaram à luz.