quinta-feira, 15 de dezembro de 2011



Dou por mim a rir-me, com os outros, de mim. A acompanhá-los no escárnio que os leva a tratarem-me como a um animal sem importância, rafeiro sujo e descuidado a viver das sobras dos contentores do lixo. Arranhado e com falhas de pêlo, manco de uma pata e olhar encovado. A rir-me com eles de tudo o que sou. Há momentos em que não me rio, que é quando me batem pontapés nas nádegas, palmadas na nuca, joelhadas nas coxas - aí não me rio, porque me dói, mas é quando eles se riem mais, e eu acelero o meu riso para me aproximar do deles e acompanhá-los. Preciso de estar ao lado deles, e de ser vexado assim. Mas porquê? Porque é que não consigo encher-me dessa força que eles esbanjam, e fazer-me igual a eles, porque é que não sinto o respeito que lhes dou sem pensar em mim? Depois de algumas bofetadas vão-se embora, e eu fico no meu lugar, o rodapé da barbearia. Sento-me no chão, que não é meu, eu é que sou dele, eu sou como o papel amarrotado que deixam cair com raiva depois de irem ao multibanco, sou a beata escurecida pelo fumo e pelos pés que sobre ela passam. Sou como a mancha azeda que o cão da viúva deixou a escorrer da árvore. A erva espalmada pela bola com que a criança brinca. O vazio deixado nas folhas pelas larvas. O risco preto de sujidade nas frinchas da janela. Os restos que vão ficando suspensos na sarjeta da berma da estrada. Sou a sombra dos bocados de pele escondidos pelas rugas de sofrimento que os velhos arrastam nos passos doridos. A mente apagada dos drogados que indicam o estacionamento. A decadência do bêbedo que contorna, bambo, o caminho para o balcão. Uma faca que se descobre junto ao cinto, numa rua deserta, diante de um rosto assustado. Um marido a gritar com as mãos à sua mulher. Um carro cujo dono ficou a pé a ver dois estranhos fugirem com ele. De tudo o que há à minha volta, só vejo a miséria, porque miséria é a minha vida, é o que tenho aprendido desde que me conheço. Miséria inútil, feita inútil pelos outros - os mesmos, talvez, a quem eu terei feito o mesmo noutra hora. Mas nessa hora, terá havido algum minuto de sol? Terá havido algum segundo de felicidade que possa bastar a que, de entre tudo o que sou, me ames?

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