quinta-feira, 24 de maio de 2012

Vaseco



Estive contigo. Percorremos juntos as calçadas líticas das muralhas, enviesámos nas ruas íngremes, estreitas e iluminadas. Próximo de ti, tentando guardar o teu sotaque e os olhos sem o brilho da malícia. O sorriso encantador e os dentes bem dispostos. Pelas vias da velha cidade, tu a caminhar, na distância simpática da formalidade amistosa, comigo. Mais gente, mas apenas tu, e eu a ver-te. Próximo de ti, cheguei a tocar-te, a olhar-te nos olhos, a sentir a blandura do rosto meigo num cumprimento automático; abriste-me a intimidade do teu quarto, a cama onde dormes, a janela por onde o sol te renova os dias, o espelho do roupeiro que partilha contigo o que é só para ti. Na tua casa na cidade - e no entanto tu eras apenas a ideia fixa de um apartamento num prédio próximo do Instituto, na periferia nova. Tu, à procura de um carro aí estacionado, ou de alguma luz nessas janelas. Tu a falares o ódio que brota da mágoa de um amor desfeito - um sentimento que conheço tão bem... Tu, imóvel numa prisão que não te deixa continuar a viver, que te esvazia lentamente a beleza num desperdício solitário. Tu a pensares nele, a falares dele, a quereres vê-lo e estar com ele - ele, quatro anos à tua frente, numa vida sem ti. E eu atrasado onze anos.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

JL 1082


Lembro-me de uma das primeiras vezes: a mãe a corrigir uma coisa que eu tinha dito mal, e eu a revoltar-me porque queria dizer o que estava a pensar, e a boca ainda demasiado infantil para te caber. Mas já aí, desde aí, desde sempre a tua presença em mim. E desde sempre isto. Isto, a tua cacofonia eufónica, com que as letras duras das tuas palavras reproduzem o lirismo dos nossos cérebros adoentados pelo calor do sol que, mesmo nos dias de chuva e no pico da noite, define a estranheza da nossa visão do mundo. Isto, a emoção impossível da tua música. Isto, o prazer de te escrever. Só nós, os que recebeste na intimidade da tua casa, sabemos o valor imenso da tua riqueza; só nós sabemos porque te amamos, e nunca alguém que tenha casado o seu passado com outro falar poderá ter a noção de tudo o que és. Pode visitar-te, viver contigo para sempre, mas só nós, que trabalhámos o espaço agreste da Razão com as tuas ferramentas subversivas, te conhecemos quase tão bem como tu a nós. Tu, filha da língua dos Romanos, nascida da sua união com as cores selvagens dos cereais fecundos e da magia terna do mar quase insular, és a pátria que Pessoa identificou para todos nós, mas és também a nossa terra, a nossa origem; o corpo provém do corpo, a alma cresce contigo.