quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Num pequeno canto do Universo, tu existes para o bem de todos nós, o amor dos teus olhos alumia os nossos erros para que os possamos saber e mudar. A tua presença nunca pode ser incólume, nunca enquanto fores assim - e sê-lo-ás sempre. Por ti descobrimos a vida, todo o propósito de sermos, a necessidade de estarmos. Só em ti o alento, o conforto, o carinho no meio desta vida. Só tu, ser gracioso, alma branca de luz, pequeno corpo (porque muito corpo já não é necessário); só tu, só em ti o apoio nas horas difíceis, a esperança e o ânimo por nos lembrares que o bem subsiste, e permanece. Por ti, cumprimo-nos.

sábado, 21 de junho de 2008

O abade, na sua velhice ágil e seca, fora muito determinante: nada de atrasos, nem de distracções. E o ocioso monge, que preferia demorar-se na cursiva daquela cópia de um livro de Tucídides, suspirou, acatou a ordem e, com as devidas vénias, retirou-se para a sua cela, afim de se preparar. Alguns irmãos, de quem era mais chegado, foram ter com ele para se despedirem, e desejarem boa viagem. Ele agradeceu, deixou-os, e partiu, sozinho, munido de alguns mantimentos e roupa, até à grande cidade. O caminho ainda era demorado, e o tempo estava difícil de neve e vento, mas no fundo gostava de sair da monotonia limitadora do mosteiro. Souberam-lhe bem aqueles dois dias devotos só a si. Inspirando ar directamente da Natureza que o cercava, olhando o sol sem os entraves do vidro tosco das janelas, vendo as coisas sem pensar em regras nem em manuais de percepção e entendimento, ele descobria um mundo alheio a todo o pensamento do Homem, a todas as grandes descobertas, a todas as preocupações com que os homens gostam de ocupar as suas vidas. Afinal, não era aquele que era o mundo alheio, mas o nosso; aquele era "o" Mundo, o nosso era... mais uma invenção nossa, sujeita, como tudo o que é nosso, a erros, imperfeições, limitações. Sentiu-se de novo ligado à força criadora da Natureza, como se fosse uma criança. Certa vez, à beira dum rio, vendo que estava só, ousou despir-se e saltar para a água; e reparando que uns rapazes o viam e se riam dele, ele riu-se também, e mergulhou para mais longe - só que nunca nadara, não sabia, e em pânico agarrou-se a toda a água que pôde para chegar à margem. Enquanto se secava, ia-se rindo do sucedido, lançando uma gargalhada mais forte quando sentia de novo a massa de água a puxá-lo para si. Chegou por fim às proximidades das muralhas, e o amontoado de casas e de gentes começou a torná-lo de novo em frade. Era dia de mercado, e dentro da cidade a feira atabalhoava as ruas com o seu caos humano. Era sua missão chegar à igreja, entregar uma carta ao padre. Procurava manter a sua integridade no meio daquele mar de corpos que comprimiam o seu; mas inevitavelmente um ombro, umas pernas, um seio lhe tocavam, o chamavam para si. Começava de imediato a pensar nas horas de bíblia que de noite, no seu claustro, lia fervorosamente, nas orações que lhe ocupavam as grandes partes do dia - mas a sensação lá estava, era real, ligava-se a algo que ele sabia que havia no seu pensamento mas que desde sempre fora tornado esquecido... Via-se homem, via-se um como aqueles e não se estranhava. Por um momento, deteve-se defronte de uma banca de cestos de vime, esquisitamente elaborados, alguns mesmo tão simples que se tornavam complexos. Eram tão belos como as mais ricas iluminuras dos grandes manuscritos do mosteiro; o vime tornava-se, assim entrançado, tão admirável como o mármore das estátuas santas da capela; os jogos de sombra entre as finas tiras desdobravam texturas tão perfurantes como os vitrais do altar-mor. Pasmado, olhou para quem os tinha, e a artista demorava-se na construção de um novo, que juntaria aos outros que tinha à venda. Empenhada no seu labor, só um pouco depois levantou o olhar belíssimo e o levou àquele ser mirrado e pálido que sem pestanejar a contemplava. Foi esse o instante das suas vidas. Juntos, correram mundo fora, estiveram onde nem o mundo esteve, descobriram o que ainda não existe. Ela, sem saber porquê, não conseguia deixar de olhar para ele; ele já só lá deixara o corpo. Bela moça, serão estes os nossos destinos? Eu encarcerado no convento, tu inutilmente gastando a tua arte na sombra dos outros que te ignoram? E foram mesmo juntos; os cestos ficaram no lugar, o padre leu a carta, ele morreu no mosteiro, ela num humilde casebre fora das muralhas da cidade. Mas foram juntos.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Subo as pequenas escadas e entro na grande sala onde estamos todos. As saudações devidas, sinceras. Rapidamente trocamos aquelas mensagens que cada um quer dizer ao outro, sobre pequenas experiências, ocasionais situações de actuação. Trago comigo aquele rosto, aqueles olhos que me permitem estar aqui tão bem. Aprontamo-nos para nos unirmos - sem nos tocarmos. Não é estando todos em círculo, nem abraçando os ombros uns dos outros: é deixando que a enérgica nebulosa se expanda de nós, através de nós, e entre nós, até que passemos a ser um só. Unidos pela força que nos agrupou. O nós, agora coeso, eleva-se através de outro conjunto de escadas, estas maiores, só transponíveis assim, em grupo. Chegamos ao lugar onde, não muito longe de nós, outros grupos, unificados pelas suas energias, nos avistam. Alegramo-nos todos, reconhecemo-nos todos. Sem saber as suas identidades, sabemos quem são. A nossa afinidade permite-nos uma ligação instantânea forte como uma amizade de sempre. Os vários grupos aproximam-se, reagem positivamente à presença, próxima de cada um, de todos os outros; e então todos nos unimos num grupo ainda maior. As vibrações energéticas que passam através de cada um dos muitos elementos (sei-o porque o sou) torna-se mais intensa, mas também mais fortalecedora. Em pouco tempo estamos já em presença de outros tantos agrupamentos, sempre em constantes unificações - até que, quando a tua imagem em meu coração se torna brilhante de arco-íris mais coloridos que os da água, aí somos todos um planeta Terra em comunhão, somos uma só Humanidade ligada pela força da sua fé, lançando para o Cosmos a sua corrente de energia pura; são os teus olhos enormes de beleza que me dão o ânimo, a consistência para estar unido a todos, onde tu também estás. Eis-nos finalmente a retribuir toda a paciência, todas as oportunidades, todo o Amor depositados em nós. Eis-nos finalmente libertos dos chumbos que, presos aos nossos pés de espírito, nos carregavam para baixo sem complacência - esses pesos que eram, no fundo, de nós. Postos em nós por nós. Agora, leves como o pensamento mais puro, sublimados pela cooperação global de energias, percebemos num relance toda a inutilidade das coisas mesquinhas e frívolas que fizemos, e rapidamente nos envolvemos na conectividade que o Infinito de luz estabelece connosco neste momento. A energia que emanamos atravessa todo o horizonte que podemos avistar, e chegará a pequenos lugares onde outros irmãos sofrem o seu estado actual. Derramam sangue, odeiam-se, são egoístas - têm os pés ainda muito pesados, muito enterrados na matéria que são. Com tempo, hão-de um dia ligar-se a nós, e reforçar a ajuda para quantos, então, precisarem. A lembrança do teu olhar serve-me, agora e sempre, como um marco histórico: aquele ponto de viragem em que o meu amor deixou de ser pessoal para ser universal.