sábado, 21 de junho de 2008

O abade, na sua velhice ágil e seca, fora muito determinante: nada de atrasos, nem de distracções. E o ocioso monge, que preferia demorar-se na cursiva daquela cópia de um livro de Tucídides, suspirou, acatou a ordem e, com as devidas vénias, retirou-se para a sua cela, afim de se preparar. Alguns irmãos, de quem era mais chegado, foram ter com ele para se despedirem, e desejarem boa viagem. Ele agradeceu, deixou-os, e partiu, sozinho, munido de alguns mantimentos e roupa, até à grande cidade. O caminho ainda era demorado, e o tempo estava difícil de neve e vento, mas no fundo gostava de sair da monotonia limitadora do mosteiro. Souberam-lhe bem aqueles dois dias devotos só a si. Inspirando ar directamente da Natureza que o cercava, olhando o sol sem os entraves do vidro tosco das janelas, vendo as coisas sem pensar em regras nem em manuais de percepção e entendimento, ele descobria um mundo alheio a todo o pensamento do Homem, a todas as grandes descobertas, a todas as preocupações com que os homens gostam de ocupar as suas vidas. Afinal, não era aquele que era o mundo alheio, mas o nosso; aquele era "o" Mundo, o nosso era... mais uma invenção nossa, sujeita, como tudo o que é nosso, a erros, imperfeições, limitações. Sentiu-se de novo ligado à força criadora da Natureza, como se fosse uma criança. Certa vez, à beira dum rio, vendo que estava só, ousou despir-se e saltar para a água; e reparando que uns rapazes o viam e se riam dele, ele riu-se também, e mergulhou para mais longe - só que nunca nadara, não sabia, e em pânico agarrou-se a toda a água que pôde para chegar à margem. Enquanto se secava, ia-se rindo do sucedido, lançando uma gargalhada mais forte quando sentia de novo a massa de água a puxá-lo para si. Chegou por fim às proximidades das muralhas, e o amontoado de casas e de gentes começou a torná-lo de novo em frade. Era dia de mercado, e dentro da cidade a feira atabalhoava as ruas com o seu caos humano. Era sua missão chegar à igreja, entregar uma carta ao padre. Procurava manter a sua integridade no meio daquele mar de corpos que comprimiam o seu; mas inevitavelmente um ombro, umas pernas, um seio lhe tocavam, o chamavam para si. Começava de imediato a pensar nas horas de bíblia que de noite, no seu claustro, lia fervorosamente, nas orações que lhe ocupavam as grandes partes do dia - mas a sensação lá estava, era real, ligava-se a algo que ele sabia que havia no seu pensamento mas que desde sempre fora tornado esquecido... Via-se homem, via-se um como aqueles e não se estranhava. Por um momento, deteve-se defronte de uma banca de cestos de vime, esquisitamente elaborados, alguns mesmo tão simples que se tornavam complexos. Eram tão belos como as mais ricas iluminuras dos grandes manuscritos do mosteiro; o vime tornava-se, assim entrançado, tão admirável como o mármore das estátuas santas da capela; os jogos de sombra entre as finas tiras desdobravam texturas tão perfurantes como os vitrais do altar-mor. Pasmado, olhou para quem os tinha, e a artista demorava-se na construção de um novo, que juntaria aos outros que tinha à venda. Empenhada no seu labor, só um pouco depois levantou o olhar belíssimo e o levou àquele ser mirrado e pálido que sem pestanejar a contemplava. Foi esse o instante das suas vidas. Juntos, correram mundo fora, estiveram onde nem o mundo esteve, descobriram o que ainda não existe. Ela, sem saber porquê, não conseguia deixar de olhar para ele; ele já só lá deixara o corpo. Bela moça, serão estes os nossos destinos? Eu encarcerado no convento, tu inutilmente gastando a tua arte na sombra dos outros que te ignoram? E foram mesmo juntos; os cestos ficaram no lugar, o padre leu a carta, ele morreu no mosteiro, ela num humilde casebre fora das muralhas da cidade. Mas foram juntos.

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