sexta-feira, 23 de outubro de 2009



Havia muita gente, mas não havia ninguém. Todas as pessoas que amontoavam o espaço eram roupa num corpo vazio, viviam para ter o corpo que pudesse vestir a roupa, e isso era o importante. Inadmissível alguém passar sem pelo menos mais do que um saco de compras, bem grande, bem cheio. Inaceitável uma mulher que não trouxesse roupa visivelmente cara e nova, um rosto carregado de produtos de Paris, ou o cabelo tão artificial como só os coiffeurs conseguem fazer. E no meio deste mundo à parte de todo o resto do mundo, neste mundo em que mesmo o mais materialista dos homens se sentiria um profeta de qualquer religião metafísica, por entre esta floresta de consumo, passas tu, com esse corpo esguio como os traços rápidos de um estilista. Tu, que, apesar de compores este quadro abominável onde não existe Deus, não existe a simpatia de um sorriso fraterno, onde a caridade é algo em que simplesmente não se pensa, apesar de tudo, és linda. Podes ter o cérebro cravado com o verbo "comprar", mas os teus olhos, a curvatura do teu rosto, a leveza das tuas pernas - fazem-me ter pena de saber que és produto desta mentalidade. E por isso mesmo, infelizmente, para além de não haver uma gota do teu sangue que diga humildade, talvez também a simples percepção, mesmo que seja, da excelência das formas do teu barro ainda te afunde mais na ilusão de superioridade que a beleza frugal e fugaz proporciona. Podias ser belíssima, se esses olhos carregados de um azul celeste tivessem de facto um bocadinho de céu: mas são azuis como as irrelevantes notas de €20, e os teus lábios rosados só sorriem perante o talão de compra.

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