quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Paro um momento, e reparo no pouco de ti que, de casa, consigo ver. Cá fora, sentada na bancada de madeira, velha como tudo, olhas o horizonte que se vai diluindo no branco que te escorre pelos olhos. Tens o corpo estragado pelo trabalho contínuo de tanto anos esforçados; a boca, onde os dentes foram morrendo com a vida, treme senil; as mãos fatigadas, irremediavelmente doentes, com as veias muito escuras a quererem rasgar a pele baça e quebrada. De que valeu, nos alvores da existência, quando o corpo é incapaz de se dominar, ter-te dito que eras a mulher da minha vida? Foi para isto que nos demos um ao outro? O gosto de sentir um corpo tenro e perfeito; de descobrir um cantinho dos lábios onde o beijo saiba melhor; de pousar a mão trémula no teu joelho, sabendo que te arrepia os lugares mais profundos do ser; tudo isso é cinza dispersa pelo vento, se se chega às nossas idades e nada há de mais substancial que faça ainda persistir o amor. Satisfizemo-nos, mas não nos dedicámos um ao outro, e assim agora somos a miséria viva de um castelo que se tivesse posto sobre a areia do deserto. É por isso que tenho vergonha de estar ao pé de ti: o estado deplorável em que estás por causa dos erros que estavam reservados para mim, mas que eu tive a desumanidade de te arrastar para eles, roubei-te à paz que te aguardava no equilíbrio de uma vida simples e trouxe-te presa pelos turbilhões do meu destino. Se eu soubesse que iríamos acabar numa casa podre e em ruínas como nós estamos, se soubesse o entusiasmo pueril de uns momentos da vida que rapidamente se perderam no nevoeiro do passado, se soubesse que a felicidade que te prometi era a felicidade que te estava a tirar - nunca teria chegado ao pé de ti, naquele dia chuvoso há tantos anos, e não te teria dito "gosto de ti".

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